7 colagens fotográficas
de Kamil Vojnar
sábado, 9 de agosto de 2008
Um poema de K., escrito em guardanapo de linho, numa dessas noites de beberagens. Foi encontrado na mesa de pedra do bar Gallo del Viento:
VIOLA DE CHUVA
No mais mineral das profundas prosas altas,
onde a viola de chuva se esconde,
lá onde as piscinas ondulam tempestuosas,
quando o escarcéu das águas se avulta,
lá a voz selvagem e as iguanas sedentas,
lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista
e a obsedante garoa rega a pedra da elegia.
No alto-mar de transparente massa cristalina,
quanto mais ao alto-mar de silêncio perto,
mais a voz vai aclarando,
se antiga é a alma que se vislumbra,
assim das profundas mostra claro e radiante
o mineral das prosas altas
que serena o que, nas sedentas, há de árido.
VIOLA DE CHUVA
No mais mineral das profundas prosas altas,
onde a viola de chuva se esconde,
lá onde as piscinas ondulam tempestuosas,
quando o escarcéu das águas se avulta,
lá a voz selvagem e as iguanas sedentas,
lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista
e a obsedante garoa rega a pedra da elegia.
No alto-mar de transparente massa cristalina,
quanto mais ao alto-mar de silêncio perto,
mais a voz vai aclarando,
se antiga é a alma que se vislumbra,
assim das profundas mostra claro e radiante
o mineral das prosas altas
que serena o que, nas sedentas, há de árido.
As barcas ao pairo. Recolho do céu do cronista clássico aquilo que o inunda de luz --- o samudrá --- depois estendo a toalha na areia fina da praia de Pinheiros-bravos. O guarda-sol é branco e Lucana me disse que chegaria às 8 horas. Percebo que ela se aproxima com um cesto de verga ao ombro, ondina que é, acena para mim que ardo com sede embaixo do guarda-sol branco e some, com timidez de virgem, a pele de seu fogo no mar. A verdadeira linguagem das preces é serva reverente do que no céu é música hidráulica. Com seu cacho de vide, suas algas, seu alumbramento, Lucana sai das águas e as esquece na fria areia. Seu corpo junto ao de K., agora, é uma delicada cena das Bodas de Canaã. O Vazio aparente das ondas – salgadas brancas espumas –, espumas que, segundo a óptica de Lucana, imitam a neve dos telhados de Kyoto. K. e Lucana adormecem e sonham que Buddah, quase invisível sob a Árvore no parque de Sarnath, indica com os olhos a pequena caixa negra. Nela uma pedra pura --- lapidem esse aquam fontis vivi --- pedra que é uma fonte de água viva.
“É perfeitamente pensável que o esplendor da vida circule por toda parte, e sempre em toda a sua plenitude, acessível mas velado, profundo, invisível, longínquo. Mas ele está ali, sem hostilidade, sem relutância nem surdez. Com a palavra certa acode ao chamado. Essa é a essência da magia, que não cria, mas convoca”. Depois de ler o aforismo acima de Kafka, partir a torrada em duas e beber o café, Lucana olha para a janela com vidraças azuladas de seu quarto. Leva um susto e argumenta em silêncio: “Não, não é uma foice, é apenas a cortina”. Fica olhando a cama desarrumada, desnuda-se, as águas do chuveiro choram desesperadas e ela só tem tempo de pensar que nunca havia tocado a pele de K. O sabonete Phebo recende aroma de noite sossegada por toda a casa. Também o mantra recende, que Lucana entoa: “Tadyatha om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha”. “É assim, avance avance, vá adiante e transcenda, vá diretamente adiante, firmemente enraizado na iluminação”. Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água: crótalo, crótalo, crótalo. Folha de hortelã no chá frio. Lucana morde conchas finas. No domingo recalcitrante o fresco de águas indo entre galhadas e pedras. Lucana sorve, para assombrar o assombro: ouro-crótalo, fina água de goivo, um risco de lágrima na concha. Adoça a espinha do peixe no cantábile que vaza do gramofone e se derrama nos tímpanos. O que salva é escrever nesse estado de óbvia distração, encostado à inclinada palmeira musical que torna mais suportável a banquisa.
Monteverdi e a praia de Pinheiros-bravos, que é um declive arenoso e confina com os ventos e a neblina vivificante. A língua natural e o ato de respirar: um só enigma. Para proteger Lucana do sol e da chuva, K. construiu uma espécie de caramanchão e, à sombra dele, colocou um banco de pedra e um frasco d’água. Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos, procurando remanso, coqueiro e céu, mas não encontra. O espírito impuro, antes de ir ao deserto, decide verificar se a sombra do caramanchão é mesmo de fresca ramagem. Lucana sopra na pele do espírito impuro, até que a pele seca se torne avena suave que daqui se escuta. Pensa Lucana: “Devo ancorar minha barca perto do caramanchão de rosas brancas e longe do sabre no mais fundo. Se os fariseus, ressoantes e vazios como tambores, ousarem insinuar que aqui não devo ancorar minha barca, logo uma irada torrente me encharca cabelos e pulmões e as árvores altas vergam até às pedras para que sumam os fariseus nas chamas de uma sonata de Monteverdi”. Pequena descrição dos talha-mares, de coloração escura, na praia de Pinheiros-bravos: se próximos às águas da neblina, quase é certo que, sendo talha-mares, nunca leram livros nem ajoelharam diante do banco de pedra e do frasco d’água, mas, sabe-se que eles têm o hábito de voar junto da água, alimentando-se de tainhas e plantas subaquáticas. Sugeri à Lucana que fôssemos às termas marinhas. Ela concordou e rezou o preceito de Buddah: “Antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa”. Quando chegamos às termas, ciprestes vieram ao nosso silêncio. A única Lucana que ali estava ciciava no tímpano do salmão transparente – salmão no leito líqüido da onda. Em torno havia um mar cativo de espumas. Naquilo pedras o mar molhava: um grosso aguar. A náutica Lucana velava o incensário de ouro e fogo, abandonava a língua no apuro do açude. O gongo a serenava. Antes que o primeiro salmão se molhasse, o salmão já estava molhado. Ao mesmo tempo em que a neblina sumia por entre as árvores, eu e Lucana, afundados no vapor oloroso das termas marinhas, éramos duas cinzas frias remoçando n’água.
Ver Anthony Quinn
no filme "Zorba, o grego"
http://www.youtube.com/watch?v=cXNApZ2ALiQ&feature=related
no filme "Zorba, o grego"
http://www.youtube.com/watch?v=cXNApZ2ALiQ&feature=related
RIVUS
A água mede o tempo em reflexos vítreos. Mudez
de clepsidras, no sobrecéu ascendem
(como anjos suspensos numa casa barroca),
e em presença de ausências o tempo
se distende. Uns seios de perfil, sono embalando
a rede, campânula encurvada pelas águas da chuva.
No horizonte invisível, dobras de anamorfoses;
sombras que se insinuam, a matéria mental.
SCHISMA
Cobre se refletindo a ouro-fio nos olhos:
sem pano nem cordame, os móbiles oscilam, barcos
sem rumo, a esmo (desertos), rio adentro
(no leito cambiante), sem remo ou vela
ao vento. Vogam no entremeio, rio afora,
no linde (os sonhos) – superfície.
(Poemas de Josely Vianna Baptista, do livro Sol sem nuvens,
impresso pela editora Perspectiva, na coleção Signos.)
A água mede o tempo em reflexos vítreos. Mudez
de clepsidras, no sobrecéu ascendem
(como anjos suspensos numa casa barroca),
e em presença de ausências o tempo
se distende. Uns seios de perfil, sono embalando
a rede, campânula encurvada pelas águas da chuva.
No horizonte invisível, dobras de anamorfoses;
sombras que se insinuam, a matéria mental.
SCHISMA
Cobre se refletindo a ouro-fio nos olhos:
sem pano nem cordame, os móbiles oscilam, barcos
sem rumo, a esmo (desertos), rio adentro
(no leito cambiante), sem remo ou vela
ao vento. Vogam no entremeio, rio afora,
no linde (os sonhos) – superfície.
(Poemas de Josely Vianna Baptista, do livro Sol sem nuvens,
impresso pela editora Perspectiva, na coleção Signos.)
A RESPIRAÇÃO DOS VELHOS
Cobrir-se com o plânctum da alegria,
antes que o langor da preguiça
nos olvide entre ceras.
O nada da brisa, a perfeição da leveza
nesse terreno coberto de bambus.
Quantas noites mansas escuto
grafadas em tábuas de caligrafia chinesa?
Construídas com ossadas de velhos sábios,
as tábuas guardam a respiração deles.
A caligrafia salva do esquecimento:
soluços, amor, relva, idioma
de velhos sábios que reverenciam o silêncio
nesse terreno coberto de bambus.
Cobrir-se com o plânctum da alegria,
antes que o langor da preguiça
nos olvide entre ceras.
O nada da brisa, a perfeição da leveza
nesse terreno coberto de bambus.
Quantas noites mansas escuto
grafadas em tábuas de caligrafia chinesa?
Construídas com ossadas de velhos sábios,
as tábuas guardam a respiração deles.
A caligrafia salva do esquecimento:
soluços, amor, relva, idioma
de velhos sábios que reverenciam o silêncio
nesse terreno coberto de bambus.
O instante em que todo fogo: riso em que todo oceano:
cristal em que todo olho: védico em que toda fuga: sonha
em que todo charme: santo em que todo sigilo: queima
em que todo erotismo: púbis em que todo templo: pássaros
em que todo sonho: limiar em que todo trem: antigo em
que toda palavra: cansa em que toda ressurreição: morre
em que toda pérola: música em que todo sorriso: buddha
em que todo cavalo: nenúfar em que todo peixe: mãe em
que te amo: animal sagrado o instante sol: único
cristal em que todo olho: védico em que toda fuga: sonha
em que todo charme: santo em que todo sigilo: queima
em que todo erotismo: púbis em que todo templo: pássaros
em que todo sonho: limiar em que todo trem: antigo em
que toda palavra: cansa em que toda ressurreição: morre
em que toda pérola: música em que todo sorriso: buddha
em que todo cavalo: nenúfar em que todo peixe: mãe em
que te amo: animal sagrado o instante sol: único
O instante em que todo fogo: perfuma em que todo oceano:
silêncio em que todo olho: esfinge em que toda fuga: água
em que todo charme: nada em que todo sigilo: rosa em
que todo erotismo: respira em que todo templo: sigilo em
que todo sonho: volátil em que todo trem: peixe em que
toda palavra: perfuma em que toda ressurreição: charme
em que toda pérola: sonho em que todo sorriso: deus em
que todo cavalo: seda em que todo peixe: morto em que
te amo: entre nuncas o instante ar: pra sempre
silêncio em que todo olho: esfinge em que toda fuga: água
em que todo charme: nada em que todo sigilo: rosa em
que todo erotismo: respira em que todo templo: sigilo em
que todo sonho: volátil em que todo trem: peixe em que
toda palavra: perfuma em que toda ressurreição: charme
em que toda pérola: sonho em que todo sorriso: deus em
que todo cavalo: seda em que todo peixe: morto em que
te amo: entre nuncas o instante ar: pra sempre
O instante em que todo fogo: sol em que todo oceano:
lágrima em que todo olho: deus em que toda fuga: musical:
em que todo charme: isca em que todo sigilo: claro em
que todo erotismo: silêncio em que todo templo: água em
que todo sonho: precipício em que todo trem: atrasa em
que toda palavra: nada em que toda ressurreição: rosa em
que toda pérola: perfuma em que todo sorris: volátil em
que todo cavalo: respira em que todo peixe: esfinge em
que te amo: pra sempre o instante lua: seda
lágrima em que todo olho: deus em que toda fuga: musical:
em que todo charme: isca em que todo sigilo: claro em
que todo erotismo: silêncio em que todo templo: água em
que todo sonho: precipício em que todo trem: atrasa em
que toda palavra: nada em que toda ressurreição: rosa em
que toda pérola: perfuma em que todo sorris: volátil em
que todo cavalo: respira em que todo peixe: esfinge em
que te amo: pra sempre o instante lua: seda
CONSOADA
Entre as constelações e o chão,
depois de uma pequena refeição noturna,
percebo que
isso é uma árvore alta entre outras árvores
isso é uma noite com tambores de couro de antílope
isso é uma fogueira em Pequim
isso é uma bicicleta e o vento
isso é uma pétala do roseiral de Xiraz
isso é a precisão do arqueiro Kenzo Awa
isso é um pórtico partido sobre o mar
isso é um cais abandonado
isso é dar-es-salaam, que significa: a saída é difícil
isso é o anel que o príncipe assírio jogou na andorinha
isso é um scherzo de Paganini
isso é um desenho de criança
isso é Miró me beijando na boca um sol
isso é um sonho com veleiros
isso é uma janela aberta sobre um campo de águas
isso é selvagem
isso é um areal moreno
mas apenas um sonho tudo isso
Entre as constelações e o chão,
depois de uma pequena refeição noturna,
percebo que
isso é uma árvore alta entre outras árvores
isso é uma noite com tambores de couro de antílope
isso é uma fogueira em Pequim
isso é uma bicicleta e o vento
isso é uma pétala do roseiral de Xiraz
isso é a precisão do arqueiro Kenzo Awa
isso é um pórtico partido sobre o mar
isso é um cais abandonado
isso é dar-es-salaam, que significa: a saída é difícil
isso é o anel que o príncipe assírio jogou na andorinha
isso é um scherzo de Paganini
isso é um desenho de criança
isso é Miró me beijando na boca um sol
isso é um sonho com veleiros
isso é uma janela aberta sobre um campo de águas
isso é selvagem
isso é um areal moreno
mas apenas um sonho tudo isso
ABRI-VOS, PORTAS DE OURO, ANTE MEUS AIS!
O que adorei até o osso, onde respira?
Ido, dissoluto, se estende ar suave
acima dos telhados da Casa de Água.
No Oldsmobile verde-claro da ilusão
passa Georgia O’Keeffe mariscando
portas d’ouro entre duas ondas do mar.
A çankha hindu afugenta demônios,
excita os deuses benévolos.
Toda devastação traz o germe de seu idílio.
O coroado nó de fogo e o jasmim
urdem o córrego nupcial.
Quassar a raiz das cactáceas no areento.
Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas,
a barca de Bach nascente.
O que adorei até o osso, onde respira?
Ido, dissoluto, se estende ar suave
acima dos telhados da Casa de Água.
No Oldsmobile verde-claro da ilusão
passa Georgia O’Keeffe mariscando
portas d’ouro entre duas ondas do mar.
A çankha hindu afugenta demônios,
excita os deuses benévolos.
Toda devastação traz o germe de seu idílio.
O coroado nó de fogo e o jasmim
urdem o córrego nupcial.
Quassar a raiz das cactáceas no areento.
Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas,
a barca de Bach nascente.
DE SUNYATA & OUTROS POEMAS
mitologia do Ocidente: mitologia da paixão / um homem
clama a Deus por sua alma que arde: Santo Agostinho e as
trapaças da dúvida / Nosferatu senta-se com sua futura
vítima lamentando-se por séculos de solidão / mas estamos
salvos: Gauguin inventou para nós uma nova metafísica,
nos deu a nós mesmos — os modernos — se não uma nova religião ao menos uma nova religiosidade / uma arte sem deus: uma arte deificada / e a veneração foi geral / os homens
— inteligentes — do século XX temos a forma mais cívica
de religiosidade: a Arte! paixão furiosa por inventar:
Ocidente / paixão pelo impossível / e a fé necessária:
êxtase em Santa Teresa / a orelha amputada de Van Gogh /
a necessidade do ato: a fé — a busca — o impossível /
tentativas do impossível (Bataille) / tentativas de mais altas
realidades / além de tudo isto que nos comove:
makios / ilusões & desilusões / encantos & desencantos /
a ilusão dos homens “livres” / sempre tanta tolice,
tanta tolice! / inventamos para nós, também, o Oriente: os
crisântemos e até as barbas de Chuang Tzu / tudo para
recriarmos / é um recriar e um reacreditar: pensar outra
vez o mundo / poder comparar e - com um pouco de sorte -
poder compreender / mas não / optamos pelo voluptuoso
sofrimento / esse que só o Ocidente pode nos dar /
ah, o paternalismo de nossa querida civilização / - não
há nada como a nossa casa - / condenados a pensar e a ser
de acordo com leis naturais que nos são alheias: / a
História, nossa mãe onipresente / a que está a ponto
de romper a caneca / as alternativas são poucas:
enlouquecer / ou santificar-se / a virtude do autismo ou
a humildade eremítica / salvar-se, pela espada ou pelo
perdão / mas salvar-se / isso clamamos isso reclamamos /
A. Artaud se dá por inteirado (não é recomendável negar
a ficção — esta — de forma extrema / amável, muito amável
a imaginação do homem puro carece de efeitos especiais /
o objeto da metáfora é a metáfora / não há intermediários entre a realidade e quem a pensa / “somos mortos com permissão” Lênin / somos o peito e somos a espada / Kandinsky descobre a pintura abstrata vendo um quadro seu ao revés /outros descobrem o mesmo — em essência — sem necessidade de ver ao contrário: se foram deste mundo / perderam a fala / voluntariamente perderam a cabeça / eis aqui uma cabeça / povoada de ideologia / de moral / os bons políticos / as boas
donas de casa / também os bons artistas necessitam de uma /
certamente, outros esperaram a Graça / uns poucos não
esperaram nada / São Francisco ensinava a pobreza
para nada / sem graça sem céu sem bem-aventurança
um cristão taoísta? /todos os misticismos se tocam /
todo místico descobre verdades que o fazem transcender
sua própria doutrina / “se encontrar o Buddha, mate-o” /
ah, as pás dos moinhos, Sancho! As glórias
de Alexandre da Macedônia não desapareceram no pó /
se resolveram no pó / esse transmissor, gerador
de história / Gandhi / a música de Portugal / o touro / o
de Picasso e os outros / as cinzas de Gramsci — o poema
de Pasolini e as cinzas de Gramsci — as folhas de uma
árvore que neste momento caem e que não vejo / o pulso;
o impulso / o beijo / a fé: invento do coração / e a
palavra que é fé / o último fogo que também será
o primeiro fogo / Alícia, ah, Alícia / a lua sempre
alheia / o peyote / os vulcões do México / os vulcões
da Costa Rica / a água a cascata o estrondo / o
estrondo fenomenal das coisas / a fricção das
coisas com o ar / a fricção das coisas com as
coisas / (um corpo sobre outro) fricção & energia /
produção ininterrupta / sem amor sem horror / o tempo
não existe / a vida sim.
Víctor Sosa, do livro Sunyata & Outros Poemas,
Lumme Editor, 2006.
Tradução: Claudio Daniel.
mitologia do Ocidente: mitologia da paixão / um homem
clama a Deus por sua alma que arde: Santo Agostinho e as
trapaças da dúvida / Nosferatu senta-se com sua futura
vítima lamentando-se por séculos de solidão / mas estamos
salvos: Gauguin inventou para nós uma nova metafísica,
nos deu a nós mesmos — os modernos — se não uma nova religião ao menos uma nova religiosidade / uma arte sem deus: uma arte deificada / e a veneração foi geral / os homens
— inteligentes — do século XX temos a forma mais cívica
de religiosidade: a Arte! paixão furiosa por inventar:
Ocidente / paixão pelo impossível / e a fé necessária:
êxtase em Santa Teresa / a orelha amputada de Van Gogh /
a necessidade do ato: a fé — a busca — o impossível /
tentativas do impossível (Bataille) / tentativas de mais altas
realidades / além de tudo isto que nos comove:
makios / ilusões & desilusões / encantos & desencantos /
a ilusão dos homens “livres” / sempre tanta tolice,
tanta tolice! / inventamos para nós, também, o Oriente: os
crisântemos e até as barbas de Chuang Tzu / tudo para
recriarmos / é um recriar e um reacreditar: pensar outra
vez o mundo / poder comparar e - com um pouco de sorte -
poder compreender / mas não / optamos pelo voluptuoso
sofrimento / esse que só o Ocidente pode nos dar /
ah, o paternalismo de nossa querida civilização / - não
há nada como a nossa casa - / condenados a pensar e a ser
de acordo com leis naturais que nos são alheias: / a
História, nossa mãe onipresente / a que está a ponto
de romper a caneca / as alternativas são poucas:
enlouquecer / ou santificar-se / a virtude do autismo ou
a humildade eremítica / salvar-se, pela espada ou pelo
perdão / mas salvar-se / isso clamamos isso reclamamos /
A. Artaud se dá por inteirado (não é recomendável negar
a ficção — esta — de forma extrema / amável, muito amável
a imaginação do homem puro carece de efeitos especiais /
o objeto da metáfora é a metáfora / não há intermediários entre a realidade e quem a pensa / “somos mortos com permissão” Lênin / somos o peito e somos a espada / Kandinsky descobre a pintura abstrata vendo um quadro seu ao revés /outros descobrem o mesmo — em essência — sem necessidade de ver ao contrário: se foram deste mundo / perderam a fala / voluntariamente perderam a cabeça / eis aqui uma cabeça / povoada de ideologia / de moral / os bons políticos / as boas
donas de casa / também os bons artistas necessitam de uma /
certamente, outros esperaram a Graça / uns poucos não
esperaram nada / São Francisco ensinava a pobreza
para nada / sem graça sem céu sem bem-aventurança
um cristão taoísta? /todos os misticismos se tocam /
todo místico descobre verdades que o fazem transcender
sua própria doutrina / “se encontrar o Buddha, mate-o” /
ah, as pás dos moinhos, Sancho! As glórias
de Alexandre da Macedônia não desapareceram no pó /
se resolveram no pó / esse transmissor, gerador
de história / Gandhi / a música de Portugal / o touro / o
de Picasso e os outros / as cinzas de Gramsci — o poema
de Pasolini e as cinzas de Gramsci — as folhas de uma
árvore que neste momento caem e que não vejo / o pulso;
o impulso / o beijo / a fé: invento do coração / e a
palavra que é fé / o último fogo que também será
o primeiro fogo / Alícia, ah, Alícia / a lua sempre
alheia / o peyote / os vulcões do México / os vulcões
da Costa Rica / a água a cascata o estrondo / o
estrondo fenomenal das coisas / a fricção das
coisas com o ar / a fricção das coisas com as
coisas / (um corpo sobre outro) fricção & energia /
produção ininterrupta / sem amor sem horror / o tempo
não existe / a vida sim.
Víctor Sosa, do livro Sunyata & Outros Poemas,
Lumme Editor, 2006.
Tradução: Claudio Daniel.
Minhas palavras em sua mente: frias pedras polidas afundando num brejo.
Aqueles frios dedos serenos tocaram as páginas imundas e lindas, onde minha vergonha vai brilhar para sempre. Frios dedos serenos e puros. Será que nunca erraram?
Seu corpo não tem cheiro: flor inodora.
Nas escadas. Uma frágil mão fria: timidez, silêncio: olhos escuros lânguidos e líquidos: cansaço.
Turbilhões de vapor sobre o banhado. Seu rosto, como estava cinza e solene! Emaranhados cabelos úmidos. Seus lábios apertam suave, o hálito sofredor se solta. Beijada.
Suaves lábios chupando beijam minha axila esquerda: um beijo serpente em minhas veias miríades. Fervo! Me retorço como uma folha que queima! Da minha axila direita salta um dente de fogo.
Uma coberta estelar me beijou: uma gélida serpente da noite. Estou perdido!
--- Nora! ---
Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta lua do dia. Um grande piano preto: túmulo da música. Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado: seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo preto.
Dedicatória: me ame, ame meu guarda-chuva.
Fragmentos da novela Giacomo Joyce, de James Joyce, em tradução de Paulo Leminski.
Aqueles frios dedos serenos tocaram as páginas imundas e lindas, onde minha vergonha vai brilhar para sempre. Frios dedos serenos e puros. Será que nunca erraram?
Seu corpo não tem cheiro: flor inodora.
Nas escadas. Uma frágil mão fria: timidez, silêncio: olhos escuros lânguidos e líquidos: cansaço.
Turbilhões de vapor sobre o banhado. Seu rosto, como estava cinza e solene! Emaranhados cabelos úmidos. Seus lábios apertam suave, o hálito sofredor se solta. Beijada.
Suaves lábios chupando beijam minha axila esquerda: um beijo serpente em minhas veias miríades. Fervo! Me retorço como uma folha que queima! Da minha axila direita salta um dente de fogo.
Uma coberta estelar me beijou: uma gélida serpente da noite. Estou perdido!
--- Nora! ---
Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta lua do dia. Um grande piano preto: túmulo da música. Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado: seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo preto.
Dedicatória: me ame, ame meu guarda-chuva.
Fragmentos da novela Giacomo Joyce, de James Joyce, em tradução de Paulo Leminski.
BISSAU SUKURU
Bissau sukuru
Guiné fundu
Murgudjadu na kasabi
n na koba
bu na ntera
Paké nhá ermon
n punta?
si kaminhu i um son son
BISSAU É UM ENIGMA
Bissau é um enigma
Guiné é um mistério
mergulhada numa profunda angústia
eu a construir
e tu a destruíres
Porquê, meu irmão
pergunto
se o caminho é único?
OTCHA KUSAS KUNSA
BISSAU KA MISTI FIA
Bissau ka mistiba fia
na ke k’i na odja
nin na ke k’i na sinti
Bissau dispidi di si fidjus
nun, i mborka
pa risibi kalef
pa risibi limbida
di nhara sikidu ku si fidida
Bissau ka fia
QUANDO TUDO COMEÇOU
BISSAU NÃO QUIS ACREDITAR
Bissau não quis acreditar
no que via
no que estava a sentir
Bissau despediu-se de seus filhos
nua deitou-se de bruços
para receber chicotadas
para receber açoite
com ramos espinhosos
de nhára-sikidu
Bissau não quis acreditar
Poemas de Odete Costa Semedo, poeta da Guiné-Bissau.
Bissau sukuru
Guiné fundu
Murgudjadu na kasabi
n na koba
bu na ntera
Paké nhá ermon
n punta?
si kaminhu i um son son
BISSAU É UM ENIGMA
Bissau é um enigma
Guiné é um mistério
mergulhada numa profunda angústia
eu a construir
e tu a destruíres
Porquê, meu irmão
pergunto
se o caminho é único?
OTCHA KUSAS KUNSA
BISSAU KA MISTI FIA
Bissau ka mistiba fia
na ke k’i na odja
nin na ke k’i na sinti
Bissau dispidi di si fidjus
nun, i mborka
pa risibi kalef
pa risibi limbida
di nhara sikidu ku si fidida
Bissau ka fia
QUANDO TUDO COMEÇOU
BISSAU NÃO QUIS ACREDITAR
Bissau não quis acreditar
no que via
no que estava a sentir
Bissau despediu-se de seus filhos
nua deitou-se de bruços
para receber chicotadas
para receber açoite
com ramos espinhosos
de nhára-sikidu
Bissau não quis acreditar
Poemas de Odete Costa Semedo, poeta da Guiné-Bissau.
um cão latindo rumor de água corrente
pessegueiros em flor densos sob a chuva
no bosque profundo às vezes passa um cervo
meio-dia à pino o rio sino nenhum
as hastes dos bambus ceifam brumas verdes
fios voláteis caem do píncaro de jade
quem sabe do lugar aonde terá ido?
coração sombrio me apóio nestes pinhos
Poema de Li T’ai Po
traduzido por Haroldo de Campos em Escrito sobre jade.
pessegueiros em flor densos sob a chuva
no bosque profundo às vezes passa um cervo
meio-dia à pino o rio sino nenhum
as hastes dos bambus ceifam brumas verdes
fios voláteis caem do píncaro de jade
quem sabe do lugar aonde terá ido?
coração sombrio me apóio nestes pinhos
Poema de Li T’ai Po
traduzido por Haroldo de Campos em Escrito sobre jade.
XXII
O que é metade ficará inteiro.
O que é curvo ficará reto.
O que é vazio ficará cheio.
O que é velho ficará novo.
Quem tem pouco receberá.
Quem tem muito perderá.
Assim também o sábio:
ele abraça a Unidade
e se torna um modelo para o mundo.
Ele não quer brilhar,
por isso atinge a iluminação.
Ele mesmo não quer ser nada,
por isso torna-se magnífico.
Não busca a fama,
por isso realiza obras.
Não busca a perfeição,
por isso é exaltado.
Porque não luta,
ninguém pode lutar com ele.
O que os antigos disseram,
“O que está pela metade
deve reencontrar a integridade”,
não é, na verdade, uma sentença vazia.
Toda verdadeira perfeição nela está resumida.
Fragmento do Tao Te King, de Lao Tzu,
traduzido por Margit Martinic a partir da versão alemã de Richard Wilhelm.
O que é metade ficará inteiro.
O que é curvo ficará reto.
O que é vazio ficará cheio.
O que é velho ficará novo.
Quem tem pouco receberá.
Quem tem muito perderá.
Assim também o sábio:
ele abraça a Unidade
e se torna um modelo para o mundo.
Ele não quer brilhar,
por isso atinge a iluminação.
Ele mesmo não quer ser nada,
por isso torna-se magnífico.
Não busca a fama,
por isso realiza obras.
Não busca a perfeição,
por isso é exaltado.
Porque não luta,
ninguém pode lutar com ele.
O que os antigos disseram,
“O que está pela metade
deve reencontrar a integridade”,
não é, na verdade, uma sentença vazia.
Toda verdadeira perfeição nela está resumida.
Fragmento do Tao Te King, de Lao Tzu,
traduzido por Margit Martinic a partir da versão alemã de Richard Wilhelm.
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