sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Serre


Quino


Pastorello


Cabelos molhados
por mil lágrimas que o peixe
chorou naquela onda

Gustave Doré (1832-1883)


O quarto azulado evaporou. Cavaleiro sombrio cobriu-se de trevas. Ficar tocado de água d’alva e com a relva colher pedras de orvalho. O amor passou no trem ajasminado. Furei jazz e vendaval na nuca. O vento negro foi devastador, esqueceu do menino entre cães. A substância cristalina da brisa traz o quarto à margem do sonho: furado de névoa respiro atravessado, mas ainda posso pressentir chuva pelas camas e de nós dois restou apenas aquela chinesa que corria atrás das árvores. Nunca sei fazer milagres soubesse dava festa acendia vespas de absoluto vôo assim como passam os dias te passava na boca caju pérola deliciazinha é adormecia si si sacratim xanxá embolado em tuas águas. Meu reino: aquele pequeno confim de ar rarefeito, aquela nuvem entrelaçada à álgebra dos ventos. Nesse reino posso tudo: esquecer palavras, não procurar a verdade, nem afastar as ilusões. Aqui não sou, não faço, entanto me movo se o pequeno confim molha-se de asas. Na linguagem da antigüidade, a palavra é algo pequeno, um peixe que cai na rede da ilusão monarca. Palavras pode que respirem, isso já pensou Aristóteles, aquele que é um silêncio no túmulo em que o empedraram. A coisa em si – palha de arroz e peixe cru – o conciso e o tosco, a negação lúcida do excesso – Aristóteles cru sob a palha – palavras de peixe comem-se com arroz. O punhal de prata na água do poço: o demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Com o livro perfumado numa das mãos, passo horas na varanda à beira da baía da Babitonga. Medito: escravo é aquele que tem a língua cortada. No oco búzio o vazio se refaz infatigável. Perante o relâmpago, os homens têm medo, pensam que o relâmpago é Deus, depois saem em disparada rente às cercas. Ao sopro do terral, escuto vindo das ondas: no princípio era a palavra e a palavra era Deus. A vida do espírito não tem paragens nem guarda-sóis, nem tampouco bicicletas: tudo é este milésimo de segundo. Portanto, se um que é puro e respira, no próprio segundo em que desvele a verdade, não a exerce, eis o que acontece: o conhecimento estanca. A vontade é uma casa caiada de branco, com apenas duas portas: a do bem e do mal. Tudo é só este milésimo de segundo: Geschwind wie der wind – velos como o vento. Soa tão para nada a palavra com que mistificas o céu. Andar sob toldo de cambraia soa mais poço, menos pedra. À pureza extrema do toldo dar o breve branco da nuvem. Toldo – perito em sombra – ali: nada entende do sol na altura. Sob o toldo, no absurdo crês: a palavra céu ser mais céu que o céu que sob o toldo vês. A leitura é que acorda as palavras: as sonhadoras do sonho. De flauta doce em punho entro no quarto – as palavras ali belas adormecidas: sonhariam com gatos e que uma luz quer, com palavras, conhecer outros lumes? Renque de árvores junto de uma parede é bom para acordar palavras. As palavras recipiente e pedra, imersas no escuro poço do calabouço. Se penetro fundo nas duas palavras, escuto algo leve e significativo. No escuro, recipiente e pedra, parece que nem respiram. Contudo, o raio de sol os aquece se neles fico atento. Algo branco faz a aparição – a lua Aleph – o aclaramento vindo da noite mais escura. Fora de nós ergue-se a realidade de recipiente e pedra. Na alma as duas palavras continuam vazias. Infância: espécie de sacada com jardim na popa de antigos navios que se comunica por meio de portas com as acomodações do sol.

As palavras apodrecem se a irrupção da fonte cessa, se o poço não encerra a brasa branca da respiração. As palavras apodrecem nas noites de chuva e, abandonadas ali – cinzas somente – as palavras esperam pelo milagre da voz que resgata do limbo as âncoras, corações e abismos. Palavras: minúsculos hipocampos? Tudo que é vivo já está no céu. Deus é rajado de coisas vivas. Inventou que a lua se vive, que é uma piscina a lua e sugere mergulhos. Antes de Deus havia pedras na penumbra. Depois dele, lençóis ao nível dos poros. As mães que nunca nos esquecem andam pelo deserto depois de verter a vida em cílios. Bebem água de vodca, sal, cal, guinchos, pois é perigosa a sina dos filhos. Vez ou outra perfumam os corpos em oásis, são sutis pelo terror de ainda estarem vivas e passam invisíveis, se salvam no coração dos filhos. Mães não voltam nunca nem no deserto de Sahel ou na noite suave e azul. Fica o diamante seco e sem sede, que recita: “O que sou já não é”. Naquela noite arrastaram meu avô e o crucificaram na ameixeira atrás de casa. Agonizou três dias, três noites. Nos dias de sol olhava o céu a plumagem dos pássaros grandes na árvore. Nos dias de sombra a dor aprofundava os cravos na carne branca. Ninguém tocava música para cuidar das chagas abertas, ou as esquecidas plumas a seus pés. Após três dias e três noites, o rosto cada vez mais branco de meu avô transformou-se em canoa florida.

Hieronymos Bosch


As coisas, quando as olhamos, não são mais externas, já estão em nós, são nós mesmos, voltam a ser externas com nossas palavras, voltam transformadas em coisas mortais.

As coisas, quando as olhamos, não são mais externas, violoncelo, por exemplo, quando olhamos – quatro cordas que se ferem com um arco –, quatro cordas não mais externas mas nós mesmos.
Só pode haver mistério se uma das barcas é branca.
Mistério: respirar além dos ossos.
A barca que é branca nem o mar sente em suas águas
a
barca

Lauren Bacall


Nadar (1820-1910)


Georgia O'Keeffe



E nas chamas, no mais íntimo das chamas,
um centauro d'água espia
pela escotilha

aqueles dias que passei à beira-mar

Yuri


Miran