terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Toni Frissell, 1958



A nuvem arrepia-se de febre até às ondas da branca espuma. Lucana folheia o livro do místico Sri Aurobindo: “Não existe mortalidade. É somente o Imortal que pode morrer. O mortal não poderia nem nascer nem perecer”. Lucana agora anda, mergulha, vai ao fundo do mar – la lengua del alma es la pluma –, Lucana anda mais, singra o areal com os cabelos pensos e o pulmão opresso. Mergulha na vastidão molhada. Afunda: onde está o invólucro calcário de uma concha, está o fundo salgado e estranho do mar ondulando mar. Com as mãos consegue arrancar de cima de si as águas e, Lucana assim imersa no vento, já sabe que a língua é de água viva e que a maré vazante afasta o porco para longe daqui. A alma é fúria grande e sonorosa, a coar sombras da ânfora proibida. A mais funda sombra é o porco-demônio que pisca, nervoso, os olhos incrédulos, ri, treme-lhe a mão esquiva, o braço enlouquece, a perna adormece, o pé medita, o tronco dança maculelê, mexe-se na cadeira, levanta-se, senta na cadeira, pisca, cai-lhe o chapéu, tomba o maço de revistas “O Cruzeiro”, ergue o maço acima da cabeça, fala com a parede, com o gato d’água, discute com a sombra do próprio cabelo no lajedo, tenta torcer o pescoço de pedra e chora de rir até os dentes caírem no chão. O porco-demônio (daimónion) é escorregoso, respira cloacas e, claro, nunca é sereno. Tem vezes o daimónion pode regar anêmonas com a marca viva que é, em sua voz, o sobrenatural, ou pode fingir que é pároco da pequena igreja do Carmo. Durante a distribuição das hóstias, pára tudo, as hóstias esquecidas no altar e, com o gesto supremo de quem vai cometer uma barbárie, cata no bolso da batina um pente e passa em seus cabelos de bolha de sabão. Basta um leve toque da ponta do pente em qualquer parte da cabeça do pároco e – catapám – o pároco explode em plena igreja e só se podem ver os nacos dele sujando os fiéis. O deus e o porco-demônio: o punhal de prata na água do poço. O porco-demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Para se distrair, o porco-demônio vai ao hall do Restaurant Palace e, ali, entre plantas exóticas e lustres de cristal, saboreia minguados caranguejos. Contrariado, ele ironiza: “Sempre que provo estes caranguejos, evoco os lagos pitorescos da Suíça”. O garçom estranha: “Perdoe-me, senhor, mas na Suíça nunca houve caranguejos”. O porco-demônio acrescenta, apontando com absoluto desdém, o prato: “Aqui também não.”

Capa de livro



Sam Alexander

Book cover for Sam Alexander "Photographic Scenery of South Africa. South Africa past and present including sketches of its principal towns and villages".

1880

Joel-Peter Witkin, sem data



Volto ao ancoradouro de Vila da Pedra, meu caro Franz, para fumar apenas um cigarro. É que eu trabalhei a madrugada inteira nas minhas Confissões orgíacas e agora bateu um certo cansaço. O ar muito seco, muito azul, talvez me serene. Ontem fui à Tabacaria do Esteves, onde também se vende absinto, e avistei a divina Elisa, do outro lado da rua, com pluma branca no chapéu. La lengua del alma es la pluma, deixou escrito Cervantes. Eu só podia ver que ela entrava numa pensão sórdida. E olha que há vinte dias encontrei na minha caixa de Correio a notícia curta de que ela iria se casar. Com quem, meu amigo? Com o conhecido proprietário da Tabacaria, o Esteves, que ainda sorri. Então casou com o Esteves? Quis dizer a ele que sua esposa o estava traindo, mas decidi ficar quieto.

A divina Elisa acaba de sair da pensão sórdida, atravessa a rua em direção à Tabacaria, e, agora sei: ela é, nas horas vagas, prostituta. Unicamente por não poder, com minha costumeira honestidade, contar ao Esteves o que vi, preferi fingir que fumava um Continental e perguntei a ele como era estar casado. O Esteves me respondeu que Elisa é uma espanhola que conhecera em Málaga, numa Semana Santa. O ex-marido dela, pacato consumidor de queijo, sofria de um terrível mal: nasciam-lhe lesmas na língua; lesmas não confiáveis. Ora uma das lesmas caiu no chá de Elisa e isso foi o suficiente para que as núpcias fossem desfeitas. Ela amara o ex-marido na cama de linho, atrás da igreja dos Lavados, o amara à beira do rio, no banheiro da estação de trem, e só por causa das lesmas decidiu vir para cá, à Vila da Pedra, e nos conhecemos ali no ancoradouro onde agora, em estado de óbvia distração, eu contemplo as nuvens.

Compreendo o romance e o motivo, só não entendo porque Elisa trái o Esteves nessa pensão barata. Depois de jogar o charuto no cinzeiro, aquela imagem dela entrando naquele lugar imundo ainda apertava na minha cabeça. Vociferei:
"Mas por quê? Por quê?"

E o vento respondeu:
"Talvez por tédio".

Recordemos: durante anos Elisa amou enlevadamente aquele homem das lesmas na língua e, há vinte dias, casou com o Esteves. Amou aquele homem porque seus grossos bigodes eram negros, e ama hoje o proprietário da Tabacaria porque ele é ocioso, amável e não possui lesmas na língua.

Katherine Lubar, 2005



Eu, a protetora da palavra de Oxum, súbito adivinho que a frase-brisa virá: sete ervas, sete águas. Oro o conjuro do templo de pedra pura, molho na retina a imagem inconclusa de um cacto sem saída, mas aguado na retina. Angorá nos envolve: imagem-angorá traduzida para objeto. Nos olhos do angorá a luz vazando para o íntimo silêncio.

O paraíso é uma gravura chinesa cercada de peixes miúdos, transparentes. Contra as nuvens oníricas, imortais eruditos do folclore chinês dão as boas-vindas a um recém-chegado ao domínio celeste: este solo de oboé do século II.

O silêncio nunca dorme.

Sôin, à sombra do Monte Yoshino, observa e ah! o gafanhoto pula – aroma fosforescente cintila um instante. Tão compenetrado Sôin, não faz outra coisa durante o dia.

Neve em Kyoto: o pinheiro vergado de nuvens. O grou, em seu galho, avista o ombro de Bashô. Ombro vira galho. Neva na neve: Bashô vergado de neve. A neve, sua brancura, cai no grou e no ombro de Bashô.

No quintal de uma casa japonesa, Onitsura se esforça para encontrar a verdade. Dez anos procurou as nuvens que se molham no fundo do rio, antes que as trutas saltem. Quando desistiu, Onitsura foi ao horto e ali se iluminou ao veras folhas de bambu: peso do sol as inclinava às águas do chão. Noturno para a quietude do pássaro pisando lago seco próximo de folhas. Noite: cabelos molham a luz suspensa no lago.

Buson escutou na Casa de Chá do Luar de Agosto, que somente as obras sopradas pelo espírito são boas. Com shi-i (visão própria), Buson aprendeu que na maré vazante águas flutuam conchas sem medo.

Com o leque branco, Hokushi abana carpas no lago abafado. Alma de Hokushi: o leque branco.

E se houver jardim de sopros no oco da estrela alfa de touro? Se pequeno mosteiro com pomar houver na constelação boreal de Cassiopéia? E se nada disso houver, que Houyhnhnms saiba imaginá-los.

A imagem é a respiração daquele que é o Estranhíssimo.

A jarra de Heidegger vista da barca Nautikkon: obra clara psicografada pelo que na água tem sede. A jarra dormindo, raro espécime, no teu pulmão. Porém tão de longe vinha a luz pelos varais, que eu só podia segredar: o oco da jarra não se faz, o oco da jarra acontece.

Oco da jarra: a existência do Vazio no centro do real
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Edward Weston, sem data


A noite acaba feito gim. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel ---, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico. Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. A noite acaba feito gim. Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. A noite acaba feito gim. Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopeia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos. Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite --- o senhor K.--- poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância --- dessa mulher que enxágua retinas --- e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. A noite acaba feito gim.

Yuval Yuri, 2006




Chuva torrencial lá fora, nos arredores de Bremen, e aquela mulher de nome estranho – Doutscha – acende uma erva.

O vinil rodando na vitrola.

Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de longos cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:
"Neste momento" – ela diz como quem se surpreende – "a neve, olha a neve..."
Tento conversar:
"Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos".
"Não, a neve, olha a neve..."

Pois Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados das casas e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da ampla árvore nessa rua de Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa com a pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva, escutar Chet Baker.

Ou talvez Doutscha só exista nesta narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.

Tenho, muitas vezes, o hábito de fumar cigarros Gauloises. Que me é esse disco que flue na vitrola um Chet Baker, salvo o instante ocasional em que a agulha toca a pele do vinil e a música, senhora das minhas horas, consola os dias noturnos da melancolia. Trata-me bem, Doutscha, escuta-me com doçura, salvo nos momentos bruscos em que, por tédio ou inércia, eu te apunhá-lo a clavícula com a faca enferrujada. Desconhecida, sim, és, Doutscha, mas por que me preocupa um símbolo, uma escada de pedra, um mergulhar o pão no café, e a razão, Doutscha, o que é? Leio aqui O Livro Negro, de Thamès Carda: “Para mim a morte explica-se como História Natural, como aquilo que tornou possível o pensamento. Se temos uma meta, parece-me que só pode ser a morte. Tudo o que se diz é sempre sobre a morte. O nosso nascimento lança-nos numa amnésia, ávidos de mar grosso e de palavras, ávidos de algumas sombras de amor. Tentamos ressuscitar a xícara e fracassamos, o fôlego e fracassamos, tentamos ressuscitar o que somos nesse instante e fracassamos, porque não se trata de ressuscitar ou não, trata-se de sumir numa Fuga, de Johann Sebastian Bach, para não se sabe onde, para onde não se sabe mais”.

À sombra de um ventilador, numa casa pequena e repleta com vasos de plantas, lembro-me de tua nudez, Doutscha, lembro-me dela no futuro com a saudade que sei que terei. Nos arredores desse pequeno jardim buscarei a chuva. De meu coração, eu pressinto, uma carpa de fogo escapa em andante lentíssimo e fura a cortina de meu quarto que a brisa estufa de leve e, pelo buraco que a carpa deixou na cortina, eu não verei o vento que não vejo agora.