sábado, 12 de abril de 2008

Greta Garbo


GRETA GARBO NA CHUVA

Eu, sentado na poltrona de uma sala vazia, observo que a luz se foi ao sabor do vento. Um grande silêncio e as persianas. Escurece; recordo que no dia que passou houve alegrias numerosas, terraços, vime, rangidos, sonolência vivificante e, creiam, houve até Greta Garbo na chuva.

Como esquecer essa tarde em que a observo, sob aquelas árvores esguias, inteiramente molhada de chuva – ela, Greta Garbo – os cabelos escorridos sobre os lábios, a saia colada às coxas.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Clare Strand

Lythia
EM CASA DA FRANCISCA

Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra.

S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C.

Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica.

Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo. Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música.

Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da Sibila – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria?

Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.

Sob a imensa curva deste céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no Vocabulário, do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras.

Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.

Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.

Cartier Bresson


O que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms
A PISCINA DA MANSÃO DOS HOOPERS

A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.

Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava – o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais – e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!

O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.

Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir?

A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem a essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer.

Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.

quarta-feira, 9 de abril de 2008


Miran


Augusto Sander


O açougueiro Werther
O AÇOUGUE DE WERTHER

A primeira vez que entrei naquele estabelecimento – mais conhecido como Açougue de Werther – percebi mesmo algo diferente. Eu solicitei 1 quilo de carne e ele olhou furtivamente para uma edificação logo em frente: o Orfanato das Meninas de Santa Teresa de Ávila.

Na calada do sereno, entre um gole e outro de conhaque, Werther afia faca de matar porco.

Duas horas da madrugada, Werther salta o muro do orfanato.

As meninas dormem, dormem profundamente.

Domenico de Musso


Santa Teresa de Ávila (1515/1582)


Oração de Santa Teresa de Ávila
A CARMELITA DESCALÇA E O COPO D'ÁGUA

Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis.

Herrenschmidt



Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, ombro que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.

Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se agora foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água me interessa.

Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para filosofar:

– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas as maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?

Botero


AS JANELAS DO VIGÁRIO


Eu, quem sou? Para citar Amiel, “sou apenas uma frágil elegia”.

Tudo pesa sobre a casca da cigarra de meu agônico destino. Para apaziguar a opressão, de binóculo, passo a tarde espiando os brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares e acabo de flagrar o Vigário que, também de binóculo, passa os olhos nos brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares.

De uma das janelas o Vigário também espia as moças que sentam de pernas abertas no banco da praça da Matriz.


Suposta "Máscara de Agamémnon". Descoberta por Heinrich Schliemann, no ano de 1876, em Micenas/Grécia.

CLITEMNESTRA

Eu afogo Agamémnon na banheira e reafirmo o preceito cáustico:

– Não chame Agamémnon de feliz, até que ele esteja morto. E agora – morto –, Agamémnon está feliz?

Claro que, morto, ele não sabe mais da sombra da oliveira ao meio-dia, e nunca mais fala quando quer falar, nem quando querem que fale. Agamémnon discursa às paredes de seu túmulo, coça da perna um verme, pensa, se é que um morto pode pensar, que lá fora ninguém é feliz, mesmo vivo.

Ladrilhos num banheiro de Londres/Inglaterra,
tendo como tema o Kama Sutra.
EPISÓDIO ECLESIÁSTICO

Durante a missa, praticamos o Kama Sutra. Ninguém nos viu dentro do confessionário.

Bartolini


Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra
MARTINUS

Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra para não ter dúvidas da obediência dela.

Martinus, os moradores de tua cidade me chamam de Senhora mestra, não porque te obedeço, mas porque os curo.

O único bem que conservou foi a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo. E armaram-se as redes de bardana para agüentar o calor nas alcovas desmanteladas.

Eric Weeks


A taciturna
A TACITURNA
(A partir de um texto de Paul Celan)


Quando vem a taciturna e quebra os canos, a casa fica sem água; a taciturna destroça rosais, canteiros de gérberas e a Casa do esquecimento, onde a taciturna vive, exala um olor verde-mofo.

Para ele a taciturna verte a lágrima no escorpião; a taciturna sopra na pele; para ele ela enche os copos de sol; para ele ela murmura as sombras do amor.

Ele, da varanda da Casa do esquecimento, atira flechas em qualquer um: quem passa à frente da farmácia, flecha no ombro; quem sai da igreja dos Beneditinos, flecha na testa; quem entra no cartório, flecha nas costas; quem sai da lotérica, flecha no pé.

Ele ela: olho no olho, no frio, presos nas profundezas, somem de si para sempre.

Ele:

– Escuto, o machado floresceu.

Ela:

– Escuto, o local não é nomeável.

Ele:

– Escuto, a chuva que a tudo observa cura o enforcado.

Ela:

– Escuto, falam da vida como único refúgio.

Anne Arden McDonald


Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro.
A CHUVA NO JARDIM DE INVERNO

Mas o verdadeiro espólio só se encontra nas profundezas da noite,
na segunda, terceira, quarta hora.

Kafka


Moro no Graben, perto do Café Continental, enterrado vivo num cubículo de cimento, que não permite que eu dance sob a tempestade, que eu corra pelas ravinas, que não autoriza que eu dê mais que um passo para cada lado.

A claridade que vem da geladeira finca sua luz fria na minha retina e, para que essa luz penetre meus tímpanos, inclino a cabeça até o ladrilho, ali me abandono, encolhido, e quase penso que escuto a chuva no jardim de inverno.

Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental.

Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno.

Ela me leva para a cama, sem saber que está molhada de mim, e sonha que é uma tempestade que rompe as maciças paredes do cubículo onde moro aqui no Graben.

Cleópatra nasceu em Alexandria no ano de 69 a.C. e morreu na mesma cidade em 30 a.C.
Diálogo dos mortos
(a partir de um texto
de Luciano de Samosáta)



À beira da piscina da casa de Freud, surge o seguinte comentário:

– Esse monte de ossos aí é da Cleópatra.

O gordo Pepe sorve a espuma lateral do copo de cerveja e diz:

– Então, foi por essa Cleópatra que morreram mil bravos? Foi por ela que sucumbiram tantos egípcios e bárbaros, foi por ela que tantas naus afundaram no
Bósforo, e que tantas cidades foram escorraçadas do mapa?

sábado, 5 de abril de 2008

Miran


Kyoshi Maitô (1907/1997)


Ver pinturas japonesas

http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://spectacle.berkeley.edu/~fiorillo/pics/ukiyoe/hokusai_waterfall.jpg&imgrefurl=http://spectacle.berkeley.edu/~fiorillo/texts/ukiyoetexts/ukiyoe_pages/hokusai_3falls.html&h=460&w=309&sz=57&tbnid=ujZ707lKIltb9M:&tbnh=128&tbnw=86&prev=/images%3Fq%3Dhokusai%2B%252B%26um%3D1&start=1&ei=uLLDR8-JMZm2ep3lpd4N&sig2=btAOZG5Z78c0OQSpBP5yHQ&sa=X&oi=images&ct=image&cd=1

Cartier Bresson


Estou num museu de arte antiga, seção de restauro. Olho através duma grande janela. É uma praia. É muito escuro, noite cerrada, pequenas ondas vêm para a praia toda negra, coberta de algas e moluscos, espécie de amêijoas gigantescas. Dessas conchas entreabertas saem os bichos propriamente ditos, vermelho-lagosta. São como caranguejos enormes, escarlates. Olho-os com curiosidade mas sem espanto. Porém os bichos vão crescendo, crescendo, vão-se tornando de estatura humana e começam erguendo-se, dançando, entrelaçados. Agora são já ídolos ou estátuas antigas que se abraçam. Então digo: é uma antropomorfização.


Fragmento do livro Anacrusa, de Ana Hatherly

Estive longe uns dias, mas retornei com algumas reflexões filosóficas de Espinosa:
1. A alma humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que ele existe.
2. A alma humana é a própria idéia.
3. A essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência.


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Pancho



Jaco van Dormael
Ver Jaco van Dormael:
um amor tão delicado.

http://br.youtube.com/watch?v=5DsOqf1T4Xo&feature=related

Quino


Era só o que faltava: holofote no tomate.

Karl Blossfeldt


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Um Laszlo Layton para Míriam Santini de Abreu


Brigitte Bardot




Merzak Allouache
Ver Merzak Allouache:
o tapa na mulher de turbante.

http://br.youtube.com/watch?v=zR5NPjj2gLY&feature=related
7 escândalos de Les Krims







Cau Gomez


Cartier Bresson


O DESPERTAR

Escutar pavores do cristal,
assombros de vendavais longínquos:
tudo é em nós e cais.

Insinuar pomares de pêssegos,
escombros apagar do caderno da infância:
o vazio em nós --- o Outro.

Ler Adriana Versiani na Germina

Angela Svoronou


JARDIM DE INVERNO

O vendaval fustiga as árvores que batem nas vidraças do jardim de inverno do senhor Caligari. Ele fuma erva, sorve líqüido. Uma deusa aquática, que ali está junto ao abajur, dirige-lhe a voz, de modo familiar, para lhe perguntar alguma coisa, algo banal que seja, mas, em verdade, para retê-lo consigo, e sentir a língua escamosa dele na sua pele branca.

Com os dedos hábeis e chuvosos o senhor Caligari ergue a saia da deusa e a violenta ali mesmo entre as plantas do jardim de inverno. Que amor mais escuro, choram árvores da noite – galhos contra muros – árvores que batem cada vez mais fortes na ampla janela envidraçada.

Antes de dobrar a esquina, ela voltou a cabeça, e, na forma do costume, disseram adeus com a mão.

Shânkara Lis Martins Karl, minha filha


E de tanto olhar para nada,
ficaste com olhos de fada.

Mosaico Romano de Raethia


Eles, lado a lado, atravessam o portal e buscam fogo no mundo dos espíritos. Lá encontram e beijam o Minotauro.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

669 palavras e uma história de amor


Quando nasceu, recebeu da madrinha o carretel.
Enquanto tecia, sentia a lua e transitava distraída
subindo escadas, vestindo nuvens até que viu o sol.
Sol --- disse --- seu nome é palavra.
Palavra --- disse --- seu nome é amor.


I

Convidou-a para ir a um lugar onde se chega só.

Sua companhia, seu enigma. Fincou as botas na neve: --- Não. Tatuou algumas palavras nas costas dela e partiram. Não havia beijos, só as pontas geladas dos dedos e uma luz azulada. Sentiu seu hálito balbuciando: --- uma história de amor, uma história de amor... Seu hálito no pescoço dela e uma armadura de luz azulada refletindo beijos. Com a ponta dos dedos desenhou seus nomes na neve. O amor vive no país das palavras.


II

Desde menino, calava o que diziam o rio e suas pedras.
Do barranco, com as mãos fechadas em concha, arrancava a argila e a moldava

sobre a pedra de minério.
Explosões solares quebravam os vasos e libertavam as palavras que desciam o rio.
A mãe, o pai, todos daquele barro.


III

Madrepérola...
Na correnteza da minha artéria deslizam suas conchas.


IV

Sou filha da costela do barro, instrumento do sopro divino,

maçã escolhida pela serpente.

Sou a gênese do prazer, do pecado, de todas as coisas que você tentou dizer.

Sou a progenitora deste reino imperfeito: filho parido de uma ostra.

Minha luz, meu útero profundo, meu amor, minha maternidade:
tambor do fundo.

Ele trouxe uma orquídea para mim.


V

Lágrima e saliva:
o gosto da dor,
a dor do prazer.


VI

Naqueles dias caminhou até a pedra de minério.

Sentada junto ao barranco ela estava. Pensou:
--- Dá-me água pois tenho sede.
Tomou todas as palavras do cântaro e encharcou suas vestes.

Do colo dela, sonhou o rio.


VII

Era uma vez uma história de amor...

Linguagemévíiruslinguagemévíruslinguagemévírus

--- Enxergo tudo daqui.

--- Silêncio, falo do lugar da dor. Falo para você, signo do Eterno, por quem arrasto pesadas correntes e entôo este gemido.

Enfim, falo do uivolobosibilaserpente, falo de onde me chamam;
--- daqui do eterno,
Senhor de todos os sonhos, despertai-me!


VIII

Deste platô alço vôo e observo duas almas que caminham na neve.
Uma luz azulada e fria me comove.
Ela traz na mão um carretel e ele segura a ponta da linha.
Vigio seus passos e desvio pés de armadilhas.
Eles, lado a lado, atravessam o portal e buscam fogo no mundo dos espíritos.
Lá encontram e beijam o Minotauro.


IX

Asas de pássara, longas penas, corpo coberto de escamas, sou a ponte por onde atravessa a loucura.

Nos amamos, eu e a loucura.

Daqui deste platô, lado a lado, vigiamos aquele amor.
Ele anda pesado sobre a neve, o vento sopra no vaso e faz música

que visita a casa de dentro.
Acende a lâmpada: no escuro ninguém consegue enxergar.

--- Com qual instrumento? --- ele pensa.

--- Usaremos o carretel --- ela escolhe.

Os dois estão presos no espelho de gelo.


X

Tenho uma fada na ponta da língua que beija meus olhos e desperta outro sentido.

Vejo dois vultos que caminham e bebem neve.

Trazem barro nas mãos e palavras inscritas nas costas.

Vejo do lado de dentro do gelo.

Trago uma fada nos olhos que beija a língua da loucura.


XI

Pesadas correntes abrem sulcos na neve.
Das piscinas geladas pulam peixes para dentro do cântaro .
Lado a lado não têm fome e lêem o futuro nas íris dos peixes.

Tempo, invenção da linguagem.

Sim, são mortais.
Sinto tudo desta nuvem.

Tempo é vírus.


XII

Pobres crianças!

Quando as vejo assim, atravessando paredes, almas perdidas na imensidão do gelo

à procura do lugar onde se vai só, uma lágrima pesa entre minhas pálpebras.

A espada continua presa ao iceberg à espera da inocência,

única força capaz de libertá-la.

Pobres crianças que partiram encobertas pela luz azulada!

Do lugar das minhas retinas cansadas, as observo.


XIII

Tambor do fundo, acorde a voz ancestral!
Seu útero, minha orquídea.


IV

Duas crianças, mãozinhas em concha, catam floquinhos de neve à beira do abismo.

(Senhor, signo do Eterno, revele a elas o segredo do cântaro, a mágica da linha.)

Lado a lado não se vêem, caminham e chegam ao lugar de onde se parte só.



Um poema inédito de Adriana dos Anjos

quinta-feira, 3 de abril de 2008


Paulo Leminski e Alice Ruiz
FRAGMENTOS DE CATATAU

Dentro de poucos instantes não vai acontecer nada,
tomem cuidado.

O problema com o mundo dito exterior, vulgo realidade objetiva, é que não faz distinção entre tanto e tanto faz.

Toda pérola tem seu dia de ostracismo.

Nunca fui aí. Joça posso com juçara, mas aposto que quem jaguara jagunço com bagunça de taquara eu jurara que não fosse tanajura na chula taba de Guardalajarra!

O poliglota analfabeto, de tanto virar o mundo, ver as coisas e falar os papos, parou para pensar ao pé de uma montanha. Assaltaram-no dois pensamentos. Um na língua materna, outro em língua estrangeira. O primeiro fez a pergunta, o outro respondeu. Resultado: sou pai de minhas perguntas e filho de minhas respostas.

Nada como um ano dentro de um dia, nada como a eternidade num lugar.

A pressa é a mãe do precipício.O pensar emite espetáculos.

Como era mesmo o nome daquele rio de quem diziam horrores da amnésia que dava na hora da senha, bebiba sua água? Não brinca... Mesmo? Que bom, mamãe, olha, estou órfão! Quem vai embora, não embolora.

Tudo feito, nada dito; estamos feitos. Não é possível dizer essa frase com essas mesmas palavras.

Quando se come é que se vê como a natureza foi sábia em colocar o boi no prato e o homem na cadeira.

Depois de um caminho que não era para se demorar, o peso do deserto do mar.

Livro, já estiveste dentro de um sonho e te fiz para despertar porque o sol é melhor que o sonho! Desconfio da dúvida, incorro numa certeza: zombo de esquecimento.

Alma, entra dentro de ti mesma, o alvo não passa de um espelho.

O gorila olha o espelho e vê Descartes, Cartesius recua o gorila, e pensa, desgoralizando-se rapidamente.

Quem fala? Muitas vozes falam dentro da minha cabeça mas a voz, só minha.

Outra vida, que esta não está dando para o gasto.


Paulo Leminski

A seleção dos textos acima é de Rodrigo Garcia Lopes (www.estudiorealidade.blogspot.com)

quarta-feira, 2 de abril de 2008



Yusuf Shahin
Ver Yusuf Shahin:
tendo como cenário
as pirâmides do Egito,
um louco avança contra a câmera.


http://br.youtube.com/watch?v=iUjbTneRF7c&feature=related

terça-feira, 1 de abril de 2008

Chema Madoz


A SOMBRA

A respiração na eternidade é assim:
se a serpente de sombra azul respira,
respiramos.

Se ela pára de respirar,
morremos.

A serpente de sombra azul
passeia sem bússola pelo paraíso.

Deus a criva com setas de canitar.

A serpente morre,
morremos.

Deus nos ressuscita no terceiro dia,
sem a serpente,
só com a sombra azul.
7 paisagens oníricas de Maggie Taylor