terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Dominique Bollinger, sem data



Não há século novo

nem luz recente
apenas um cavalo azul

e uma madrugada.

Federico García Lorca


Cara amiga,

eu acredito muito no poder onírico: eu penso que devemos acordar do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). No estado onírico podemos voar com uma árvore perfumada nas mãos; ao acordar vemos aquela árvore no quintal, só que não estamos mais voando nem a árvore é perfumada; isto é o que torna as coisas, de certa maneira, chatas ou desesperadamente enfadonhas. Por isto devemos despertar, não do sonho, mas do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). Devemos aprender a retomar a potência do onírico; isto já falava o Nietzsche em sua teoria filosófica do Eterno Retorno.


Contudo há um outro estado, anterior à vigília, que se chama o Deus ou Algo: eu creio firmemente que o Deus ou Algo é quando a luz que temos (ou consciência) ilumina, alumbra, aclara a escuridão. A luz não apodrece. A luz não pensa. A luz, em latim dies: daí vem a palavra dia e a palavra Deus; Deus que é luz, não deste mundo, nem do outro.


Freud foi um divisor de águas no século 20, porque ele descobriu que, no tal do Inconsciente ou Deus ou Amor, só há o vocábulo sim.


O não vem do ego, do que há de mais podre em nós, do tirano que há em nós e que diz que a potência da vigília (o mundo externo) é mais eficaz que a potência onírica. O ego é aquele que diz, todos os dias, que um poema não vale nada; que um passo de dança não vale nada; que uma escultura do Aleijadinho não vale nada; que uma linha de Paul Klee não vale nada; que uma suíte para violoncelo de Johann Sebastian Bach não vale nada.


Por isto devemos esvaziar o ego.O único poder do ego é reconhecer que não tem poder algum: e isto é reverência, humildade, ou deixar que as coisas fluam. Paul Valèry sugeriu: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu nevoeiro".


Numa sala, se alguém disser que há um cavalo azul esvoaçando, sabemos que só as crianças o verão (quiçá alguns velhos). Ninguém entra no Reino se não se tornar criança (não no sentido de tamanho ou idade), mas criança no sentido de se abismar no lúdico, no abismo livre das águas e ver as coisas com olhos novos e retinas enxaguadas pela chuva.


E se, no estado de vigília, praticamos o estado onírico, aí somos artistas e, quanto mais artistas, mais conscientes. Outro dia eu imaginei que um leão de fogo passava próximo de minha xícara de chá e, nela, esquecia sua sombra vacilante. Eu não via o leão de fogo, apenas sua sombra na xícara de porcelana branca. Claro: nem o leão de fogo nem a xícara de chá nem a sombra existiam no estado de vigília; eles existiam, somente, no estado onírico. Quando me refiro ao estado onírico, falo também da glândula pineal, cuja função em nosso cérebro é ver; a glândula pineal é o nosso terceiro olho – nosso olho védico – o Olho do Deus ou do Algo: Aquele que tudo sabe e de quem nada sabemos, porque conhecer o Deus ou Algo é conhecer-nos. Através da glândula pineal podemos ver com os olhos fechados tudo o que há no mundo vasto mundo; e, assim de olhos fechados, recordar do mar, do vento, das barcas; rememorar a nossa origem primordial e nossas outras origens que tais.


O amor é um sim primordial; é fluido integrativo; o Deus é sim, nunca não; a não ser que este não seja para o ressentimento; a tristeza, a mentira; a violência; o desamor.


Devemos despertar do estado de vigília, não do estado onírico. No estado onírico podemos ser tudo, a cada milésimo de segundo. No estado de vigília vivemos sob o tacão da selvageria, humilhados pelo grilhão da mesmice, imersos em baboseiras e cotidianos aviltantes. No estado onírico eu posso fazer comigo e com quem amo o que a primavera faz com as cerejeiras; posso, igualmente, lamber o sal de todo o corpo daquele Ser que adoro e ciciar em seu tímpano a ondulação dos capinzais do Ceilão. Ver as coisas externas com a potência do estado onírico, eis a arte e a condição humana. No estado onírico curamos chagas com apenas passar a nossa língua de bálsamo nelas. Precisamos cuidar das coisas do Espírito (as coisas do estado onírico) e o resto nos será dado de acréscimo. No estado de vigília ficamos na cama dos hospitais. No estado onírico somos pássaros; no estado de vigília somos deputados, gerentes de banco, burocratas da pior espécie. No estado onírico somos um improviso só, algo novo, jazz do coração


Por isto viemos à Vida: para reverenciar o Deus que há em nós; o Deus paradisíaco enamorado pelas obras do tempo: um cabelo, um sorriso, um cálice de vinho; um barco que singra em torno da ilha.


Eu creio em poucas coisas, minha amiga; eu apenas creio que o Deus precisa de nosso pobre coração para existir. Devemos ser reverentes à potência do estado onírico e despertar as forças oníricas latentes. Por outro lado, devemos despertar do estado de vigília, enriquecendo a vigília com leões de fogo, deixando-a fluir musical.


Somos deuses quando nos abandonamos ao mistério.

Abraço
do

Fernando José Karl

Fritz Henle, 1975



Se não se escutam as folhas do arvoredo, Lucana gasta os olhos numa página avulsa do poeta Almafuerte: yo soy un palmar plantado sobre cal e pedregulho. Os vocábulos lidos na frase anterior já estão mortos, derrotados, e unicamente a retina do leitor pode trazê-los à vida com um sopro. Se o vocábulo é sopro e o sopro é vida, sopramos em yo, sopramos em soy, sopramos em un, sopramos em palmar, sopramos em plantado, sopramos em sobre, sopramos em cal, sopramos em e, sopramos em pedregulho. Lucana confessa ao palmar plantado: “Eu sou uma daquelas víboras descascadas junto à fonte fria. Com pinças curvas eu arranco o cérebro dos fariseus – gruta com lesmas – pelas fossas nasais. Eu, com um garfo de ouro, faço um talho na cara da prosódia sonolenta e, debaixo do chuveiro, tento captar, apesar da água torrente, o sentido das palavras em Fernando Pessoa: ‘Atinjo a força de palavras, não para realizar a obra que eu nunca poderia realizar, mas ao menos para dizer com simplicidade por que razões não a realizei’. No espelho, enquanto me enxugo, verifico que na alma continuo sendo uma daquelas gueixas com neve no negro cabelo. Escuto a balada de Narayama e, com a colherinha de açúcar, faço nevar no espírito do chá”.

Quino

Em busca do tempo perdido



Roger Fenton

Reclining Odalisque

1858