sexta-feira, 11 de abril de 2008

Clare Strand

Lythia
EM CASA DA FRANCISCA

Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra.

S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C.

Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica.

Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo. Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música.

Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da Sibila – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria?

Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.

Sob a imensa curva deste céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no Vocabulário, do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras.

Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.

Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.

Cartier Bresson


O que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms
A PISCINA DA MANSÃO DOS HOOPERS

A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.

Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava – o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais – e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!

O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.

Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir?

A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem a essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer.

Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.