Única fotografia conhecida do Deus
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
A RESPIRAÇÃO DAS MULHERES
Monteverdi e a praia de Pinheiros-bravos, que é um declive arenoso e confina com os ventos e a neblina vivificante. A língua natural e o ato de respirar: um só enigma. Para proteger Lucana do sol e da chuva, K. construiu uma espécie de caramanchão e, à sombra dele, colocou um banco de pedra e um frasco d’água. Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos, procurando remanso, coqueiro e céu, mas não encontra. O espírito impuro, antes de ir ao deserto, decide verificar se a sombra do caramanchão é mesmo de fresca ramagem. Lucana sopra na pele do espírito impuro, até que a pele seca se torne avena suave que daqui se escuta. Pensa Lucana: “Devo ancorar minha barca perto do caramanchão de rosas brancas e longe do sabre no mais fundo. Se os fariseus, ressoantes e vazios como tambores, ousarem insinuar que aqui não devo ancorar minha barca, logo uma irada torrente me encharca cabelos e pulmões e as árvores altas vergam até às pedras para que sumam os fariseus nas chamas de uma sonata de Monteverdi”. Pequena descrição dos talha-mares, de coloração escura, na praia de Pinheiros-bravos: se próximos às águas da neblina, quase é certo que, sendo talha-mares, nunca leram livros nem ajoelharam diante do banco de pedra e do frasco d’água, mas, sabe-se que eles têm o hábito de voar junto da água, alimentando-se de tainhas e plantas subaquáticas. Sugeri à Lucana que fôssemos às termas marinhas. Ela concordou e rezou o preceito de Buddah: “Antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa”. Quando chegamos às termas, ciprestes vieram ao nosso silêncio. A única Lucana que ali estava ciciava no tímpano do salmão transparente – salmão no leito líqüido da onda. Em torno havia um mar cativo de espumas. Naquilo pedras o mar molhava: um grosso aguar. A náutica Lucana velava o incensário de ouro e fogo, abandonava a língua no apuro do açude. O gongo a serenava. Antes que o primeiro salmão se molhasse, o salmão já estava molhado. Ao mesmo tempo em que a neblina sumia por entre as árvores, eu e Lucana, afundados no vapor oloroso das termas marinhas, éramos duas cinzas frias remoçando n’água.
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é de dar
A RESPIRAÇÃO DOS VELHOS
Esse poema foi escrito em reverência à vó Ana, 97 anos.
Cobrir-se com o plânctum da alegria, antes que o langor da preguiça nos olvide entre ceras. O nada da brisa, a perfeição da leveza nesse terreno coberto de bambus. Quantas noites mansas escuto grafadas em tábuas de caligrafia chinesa? Construídas com ossadas de velhos sábios, as tábuas guardam a respiração deles. A caligrafia salva do esquecimento: soluços, amor, relva, idioma de velhos sábios que reverenciam o silêncio nesse terreno coberto de bambus.
Esse poema foi escrito em reverência à vó Ana, 97 anos.
Cobrir-se com o plânctum da alegria, antes que o langor da preguiça nos olvide entre ceras. O nada da brisa, a perfeição da leveza nesse terreno coberto de bambus. Quantas noites mansas escuto grafadas em tábuas de caligrafia chinesa? Construídas com ossadas de velhos sábios, as tábuas guardam a respiração deles. A caligrafia salva do esquecimento: soluços, amor, relva, idioma de velhos sábios que reverenciam o silêncio nesse terreno coberto de bambus.
Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.
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