quinta-feira, 29 de maio de 2008

Jerry N. Uelsmann, 1959


Vento quente no jardim da Casa de Água. Más valdría no haber nacido. Balofas nuvens: no undoso céu curvas imensas de cristal emanam dos eucaliptos e, se fumo erva-cidreira, me transmudo para um filme de Fellini, no exato instante daquele take de Amacord em que uma freira anã ajuda o louco de pedra a descer da árvore. Não sei se é o efeito do capim-cidreira, que clarifica e intensifica tudo a meu redor; também não sei se essas balofas nuvens algum dia existiram. Para me distrair, enquanto Lucana se espreguiça na banheira, eu leio Arkadii Dragomoshenko na varanda da Casa de Água, sorvo ostras com limão, crustáceos com salsa e coentro. Eu lendo a ode em que Arkadii Dragomoshenko descreve o último suspiro de Oskar Kokoschka. Depois abandono as odes, contemplo na banheira a respiração daquela que, após o banho de sais, vem espraiar-se ao vento.

Maurice Tabard, 1929

Se é cedo, ergue-se, anda, cansa, até alongar-se novamente e adormecer na rede e sonhar que um íbis está nevando no outro mundo, que um íbis está lendo o sol. Fim do sonho, K. acorda para ver as bacias de água pelo casarão. Reza: “Esta é a confiança que temos em Deus: se lhe pedimos alguma coisa segundo a Sua vontade, Ele nos ouve”. (João 5, 14). K. tenta o sortilégio e esboça uma oração: “Meus pés de ouro equilibram-se em peixes. Inciput erat verbum: no princípio era a palavra. A palavra é clarabóia sobre o pensamento escuro. Jesus cita as antigas escrituras para sugerir que somos deuses. Na fonte fria lavar cabelos, lavar cabelos na fonte fria. Pés de pluma equilibram-se em águas. Tenho confiança em Deus e a Ele peço quatro coisas, segundo a Sua vontade: a força da criança, a força das mulheres, a força da poesia, a força da música.”