
Aqui, ao esquecer um ramo de chuva no tatami, presto minha reverência ao grande mestre Kenzo Awa.
O Tao que pode ser mencionado não é o verdadeiro Tao. Nomes podem ser mencionados, mas não o nome eterno. A origem do Céu e da Terra está na ausência de nomes. A Mãe de todas as coisas também não pode ser nominada. Mesmo oculto, o Tao exerce sua influência. Devemos olhar esta influência como Sempre-manifestada. E quando é manifestada, devemos olhar para outro lado. Esses dois fluem da mesma fonte. Embora tenham nomes diferentes, ambos são chamados de Mistérios. E o Mistério dos Mistérios, o Tao, é a porta de tudo o que é essencial.
Capítulo 1 do Tao Te Ching
O pequeno inseto com asas brancas descerra a porta de aço maciço. O insignificante, o mínimo, o quantum descerram a porta maciça.
Aqui, no Templo de Sat, Eu, o arqueiro quântico, empunho o Arco, a Flecha e recito: tenho o dom de atrair o acontecimento de acasos felizes.
Diz o Buddha:
“Antes que a primeira vela
se acendesse,
a vela já estava acesa”.
Nessa hora sem sombra, ignoro tudo na arte em que sou exímio. Apenas contemplo puramente o alvo.
Algo dispara, algo acerta. Algo: a essência de uma coisa.
O mérito desse tiro, no entanto, não me pertence, pois ao permanecer esquecido de mim mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima, o disparo foi realizado pelo Algo que, tal qual uma fruta madura, caiu.
Só o que escuto é um zunir que perfura o ar:
Algo dispara a flecha,
algo acerta o alvo.
Mas Algo também diz, se afinarmos a escuta:
Algo diz pára de sofrer,
diz pára de mentir,
diz pára de ter ressentimento,
diz pára de baixo-estima
e algo acerta o alvo.
O ponto em que a coisa-em-si (o Átman: o indestrutível) entra mais imediatamente no fenômeno é aquele em que a consciência (mente sem pensamentos) ilumina a Vontade.
Mente: consciência com pensamentos.
Sono, sonho, vigília.
A psique (alma), para os gregos, significa: inseto, mulher bonita, sopro.
O pequeno inseto com asas brancas descerra a porta de aço maciço. O insignificante, o mínimo, o quantum descerram a porta maciça.
Ou como dizia Paulo Leminsky: “E no interior do mais pequeno abre-se profundo a flor do espaço mais imenso”
O que é o quantum? A menor medida possível da matéria, que não pode ser subdividida em nada menor. Segundo Stephen Hawking, quantum é “a unidade indivisível em que as ondas podem ser emitidas ou absorvidas”.
O texto acima é fragmento do livro
“O arqueiro quântico,
de Fernando José Karl
Enquanto o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar – ou em outras palavras, ficar na máxima tensão, sem intenção –, Herrigel não pôde deixar de dizer:
– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.
Na volta, reparou que o velho arqueiro Kenzo Awa se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou.
Kenzo Awa permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.
Espiando
Rita Hayworth
no banho
L’hydre-Univers tordant son corps écaillé d’astres.
Água morna de chuveiro na pele de Rita Hayworth. Com suavidade descerro as portas do box e a flagro ensaboando as clavículas, o ventre, os pés. A nudez dela ondula sombras nos azulejos brancos. Vidros embaçados, o barulho da água atrás da cortina de plástico; as coisas essenciais, os reinos da chuva, incrustados fora da razão. Aqui, ante Rita Hayworth, devo ser um servo, e servo reverente. Ela me chama, aproxima seus lábios dos meus e nos beijamos através do plástico transparente: dura apenas um instante. Não esqueço nunca que eu tenho pelas banhistas de chuveiro uma predileção especial, ainda mais se essa banhista é Rita Hayworth. E se, após o banho, ela cobrir o nu com uma toalha, ai dela, eu viro Calígula, o Terrível, ordeno a meus exércitos que arranquem a toalha enrolada em seu corpo. Que a toalha suma! E que reste límpida a nudez de Rita Hayworth, assim deitada na cama, em estado de óbvia distração.