segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Rita Hayworth




Ver Kurosawa

1. http://www.youtube.com/watch?v=SIJBT4Rq4lk&feature=related

2. http://www.youtube.com/watch?v=eGhqHZypds4&feature=related

Man Ray


A tempestade

A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão. Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida.

Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol para descansar um pouco. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disso, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda desse hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nessa pacata Vila de Torre Escura, Schopenhauer encontra a freira. Quando ia desferir o soco, ela reage:
– Agora não; você está muito cansado –, e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.
– Você conhece esse peixe? – pergunta a carmelita.
Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, a tal ponto que ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel Sunset Boulevard e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.
Schopenhauer pergunta:
— Quanto tempo estás ao sol, Lythia?
Lythia responde, espreguiçando-se:
— Há milênios, milênios.

Uma sombra desce, então, ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:
— Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias.

Cartier Bresson


O seu guarda-sol me lembrou uma foto linda do Picasso, na praia de Málaga, protegendo a Dora Maar

Absorta em si mesma, intacta planta viva n’água, Dora Maar percorre o sonho mau dos mortos e os puxa, com os cabelos, por cima de ondas grossas de sal. Uma deusa Dora Maar? Apaguem seu nome, a pele, a respiração e dela só pode restar um mantra consciente da realidade. Se deseja grafismos de oleandros e sargaços, também deseja a primeira respiração da sereia branca e aguarda embaixo do guarda-sol o sopro do paraíso. Dora Maar duramente verte algumas palavras, para sempre tecendo o corpo com asas acima do areal, e dá rasantes pelas quinas dos terraços suspensos de Málaga. Dora Maar aceita que Picasso a proteja, na praia, com aquele guarda-sol. Com o desconcerto habitual, Dora Maar vê sua cabeça ser arrancada dos ombros pelo vento e passar rente à torre da igreja de San Isidro, por baixo do céu a cabeça de Dora Maar e as nuvens entre as nuvens.

Aqui, na paia de Málaga, em estado de óbvia distração, Picasso contempla puramente os objetos: samambaias, conchas, coqueiros. Os dois entram no casarão plantado rente às águas. Ele passa a língua no salitre perfumado do pequeno bosque dela. Dora Maar abandona-se num dos recantos do hall desta edificação à beira-mar e sabe que, soprada além das vãs águas molhadas, há ondas, ondas, ondas.

Na cozinha ou deitada no quarto, recolhida de uma pronúncia de brisa inacabada, Dora Maar espia pela grande janela a luz que irradia sons de ouro – enquanto jasmineiros fervem no quintal – a luz adormece para sempre no ondular vazio de longas folhas das bananeiras.

No piso de uma das salas do casarão, caído um livro. À página 61, a linha de frase: “Encosto o raio no tímpano e o cântico opressivo se desvanece”.

Na piscina, na noite, ou agora singrando com a barca o rio azul de Sabalquivir, Dora Maar e Picasso já sabem que a pedra é uma fonte de água viva e que a siriringa é água tremente pela passagem dos peixes. A tempestade fincada no ponto de orvalho, não fere o orvalho. Nem chifres de rinoceronte machucam esse ponto aquático nem o mal fere a chama de Dora Maar sentada à escrivaninha. Preguiçosa e indiferente, ela cobre o rosto com véu de estrelas e, com ele, adoça a língua e o chá
.

Quino