quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Barnaby Hall, 1988


Molhada ainda de marinhos ventos, a Casa de Água guarda a respiração dessa mulher que anda, num estado de vidência órfica, da varanda ao quarto; do quarto à sala de música; e dali ao sono. Atrás dos muros de todas as casas de Villa da Concha há sempre uma roseira-branca que desfolha a chuva. Olor fino de chá. A essência de Krishna: Krim. Dentro do sono da mulher que respira inicia uma outra Casa de Água – a do sonho – que vence as chuvas contrárias e navega ao longo de uma restinga onde, naquela duna, escutamos um espírito que pronuncia: “Os hindus costumam dizer que existem árvores que podem ser chamadas de Kalpvrakshas – senta-se sob elas e tudo o que se deseja é satisfeito sem intervalo de tempo”. Inspirado pelo dito oriental, deito sob uma oliveira e peço ao meu coração que nade num trevo de quatro folhas.

Barnaby Hall, 1997


Nunca mais me esqueço da sombra silenciosa que marca o piso de pedra da pequena igreja do Carmo. Ali, diante do oratório, rasgo e devoro algas de Bíblia. Solidão é rito e, se venta lá fora, na pia baptismal uma folha seca. Aqui acordo, em meio ao sonho que é essa pequena igreja; acordo para a lucidez de que estou sonhando e, se não sonhar --- sucumbo --- igual onda que se extingüe ou fina linha de lápis que se apaga. Anoto no cahier: “Quem anda nas águas, envolto em névoa antiga, nada quer da cruz. O lado oceânico da cruz, existe? Ou existe só essa avena perfumada de altura?”. A presença quase física da imagem do deus Orum, nessa pequena igreja cristã, faz uma sombra perfumada nas paredes brancas, e é para este deus que escrevi, nas algas da Bíblia, um oriki:

QUANTO MAIS PRÓXIMA A LÍNGUA
DA ORIGEM DA CHUVA,
MENOS FEL E GRAMÁTICA

O acaso espreita da folha em branco.
Toda sede do céu é de abismo
e vivace sorvo, touro de mar caço à unha:
oro a Orum, peço que a neve nô
caia
nas árvores vergadas pela névoa.
O pensamento quer matar a sede
no oriki da chuva.
Quanto mais perto da música de câmara,
mais a língua venta um acorde que amanhece
esse virgem verso,
esse rosário de buirás,
esse kami
na imensa altura do vento.

Barnaby Hall, 1997


Chego ao casarão e uma chuva noturna, com a lira destemperada, lava tudo, desde a carniça do sovaco da cárie que trago na alma até às plantas ressequidas a chuva repentina lava. Ia entrar, mas prefiro fechar os olhos e relembrar aquela história que me contou um velho marujo no bar Gallo del Viento. Dizia-me ele que, em sua casa à beira do ancoradouro, havia uma ave-do-paraíso morta em cima da geladeira Cônsul. Ave-do-paraíso que morreu, depois que provou carne de cavalo estragada. Cavalo que morreu de tanto carregar baldes de água para apagar o fogo que se alastrava pela casa. Fogo causado pela queda dos longos círios nas cortinas de linho branco. Círios postados ali para o velório, enquanto as labaredas iam e vinham lambendo os móveis, os tapetes. Velório? É, velório de sua mulher, que estava na sala de jantar, quando ele entrou desesperado em casa e a matou, pensando que ela fosse um gatuno, com certeiro pontaço de faca na altura do coração. Claro que não ri da história do marujo. Me benzi com peixe e talos de arruda, parti águas de oceano para deslocar abismos, caí em cisternas e escutei Rimski-Korsakoff num disco de vinil usado e se eu cerrasse os olhos agora e escutasse com atenção o séptuor que a senhora do gelo desfia na varanda? O séptuor que diz assim

HOSOMI

Piscar do espírito:
o paraíso
no sonho
te esquece entre águas e conchas
e, súdito,
ao acordar
te respira

Barnaby Hall, 1996


É um Chaplin ou um quartzo ou um laranjal quem vai iniciar esse capítulo? Fomos dilacerados desde o nascimento. Origo et fons. Somos apenas sopros no curtume a descansar à sombra do vendaval. Tal o Vishnu enverdecido, a epifania de plânctons revivesce dourada na nudez do pensamento, que não se turva nem com a aparição de pequenos cavalos-marinhos agrestes que vivem em suspensão nas águas salobras e que, também, são conhecidos como haloplânctons. A estrela da manhã foge do liso céu e se equilibra no cílio de Lucana. Um esgarçar de ribombo recende grosso do entrechoque de barcaças. Se os esgarços de ribombo fossem vozes, que recenderiam ou revelariam? Rinocerontes-do-mar ou o alabastrino óleo de Caab? O sono esquece na varanda da Casa de Água um espelho: astúcia da vigília, para que o invisível, afastado de ossos, nuvem, nervos, ilusão, pizicato, tractatus – fisgue-se a si mesmo no Vazio; capture, no espelho, a sensível fonte. Neste refletir, o invisível, por sua vez, transmuta-se em sopro de viração – potencia oscura –, sumindo-se num oboé e, na neblina da madrugada, é apenas neblina, nada mais.

Barnaby Hall, 1998


Em Villa da Concha, guarda-sóis na praia de Pinheiros-bravos. Eu, K., observo a praia de longe e, após três cigarros de erva-cidreira, passeio meus pés pelo tapete do casarão, torno-me mais confessional e sonho que há búzio no areal. Decido ir ao mar. Desço as escadas de pedra. “Cada um de nós é um búzio”, afirmou Kierkegaard. Vindo das angras corroídas de salsugem, o vento nos guarda-sóis, que resistem. Então sou búzio e sombra de búzio no salitrado areal? O vento forte não leva o búzio nem a sombra do búzio. Ando mais um pouco pela areia fina e branca dessa praia inesquecível e penso que não há nem nunca houve, no azulado recamo do celeste céu, sequer um resquício de fronte angelical ou espíritos a esparzir unções; por outro lado, na praia de Pinheiros-bravos, pode ser que o silêncio seja o Deus que tanto espero – o Deus do suave frescor e do mantra Om. No arco do pensamento sopra uma embarcação que amanhece. Água molha o búzio, molha a vegetação dos ventos. A vista abarca, de pronto, tudo o que em Lucana é um belo relâmpago: sei de suas feridas fundas, das duas ramas tenras que se apartam como coxas de mulher, e ocultam na juntura um punhado de musgo negro. Os guarda-sóis continuam ali, cravados na areia. Se escuto um azul, é o mar que escuto e o arco do meu pensamento extrái essa voz de orvalho da pedra tosca, voz que traz à tona as miragens internas que sopram das próprias palavras: sargaço, caranguejo, alga. Não devemos escutar as palavras, mas sim o fogo invisível que há nelas – e as excede.

Barnaby Hall, 1997


Breve carta e um pequeno conto de K.: “Lucana querida, aí um pequeno esboço de narrativa escrito à beira do ferro-gusa e de ramos sombreando arroios:

A BANHISTA E O RINOCERONTE
“Uma névoa rósea e palpitante de ninfas
--- nereidas, dríadas, oréadas, napéias coleantes,
oceânides melodiosas”.
(Júlio Dantas)

Banhista. Pessoa que se banha em mar, rio, piscina etc. Pessoa que se submete a banhos medicinais. (Dicionário Aurélio)

Rinoceronte. Do latino clássico rhinoceros, otis). Mamífero ungulado, perissodáctilo, ceratomorfo, rinocerotídeo, maciço, pesado, de cabeça muito alongada, com 1 ou 2 chifres, situados, neste caso, um após o outro. Cauda curta, os quatro pés com 3 dedos de cascos separados, boca pequena e lábio superior alongado. Atualmente existem 4 gêneros, com cinco espécies: a indiana, com 1 chifre (Rhinoceros unicornis), a javânica (R. sondaicus), a de Sumatra (Dicerorhinus sumatrensis) e duas africanas (Diceros bicornis e Ceratotherium simun). (Dicionário Aurélio)

“Eu sei que a banhista não existe, mas entre duas ondas do mar a banhista mergulha e a respiração dela – napéia coleante – se a imagino, existe junto do pomar e do rinoceronte. O sono íntimo da talássica nereida me doura. Rente a um muro de Cnossos, as duas ondas do mar nunca secam, ressuscitam molhadas no sonho da banhista. Ossos do rinoceronte secam, não ressuscitam nunca mais, como nunca mais ressuscitam o fel e o urinol. Assim os arcanjos nunca extraviam suas blusas d’água e a banhista – oceânide melodiosa, napéia coleante – respira agora na Casa da névoa”.

Barnaby Hall, 1988


Na caixa com areia ali se enfia, à sombra dos ramos do muro, o gato mourisco. Lucana philosopha: “A música de Bach é uma árvore barroca que cresce com os ventos”. K. costuma chamar a Casa de Água de Templo de Khajuharo --- e sabe que ali, nesse templo metafórico, dançam ventanias; ventanias que nunca poderíamos esculpir na pedra --- pedra que floresce calma e pensativa. No Templo de Khajuharo --- ou Casa de Água ---, a atividade da noiva Lucana sopra os pingos dos ís. Se à meia-noite vai ou não à Missa do Domingo de Ramos, se escuta o sopro renascentista ou lhe trazem um jarro que vaza água, isso pouco importa. O que deseja Lucana, quando anda de lá para cá em seu simulacro de templo, é fumar a fruta das plantas e, minuciosa, investigar essa luz vinda do alto, pela telha de cristal, uma luz de aquário, simples, verdosa, acalmada pelo silêncio. E se em copo de vidro bebe o vinho forte e negro, é porque aqui, no Templo de Khajuharo, ela pode ver e escutar, contra o muro gretado, a árvore barroca que cresce com os ventos.

Barnaby Hall, 1998


Para vislumbrar o ponto de orvalho – que é o princípio da serenidade –, cada palavra precisa orar sobre seu próprio escombro; e se aceita que é escombro, a palavra se realiza, casta e sórdida, como nesse fragmento de Rimbaud: “Feéries profanas. – estou sentado, leproso, sobre os vasos quebrados e as urtigas, ao pé de uma parede corroída pelo sol”. Após a leitura desse pequeno texto embaixo daquela árvore, na praia de Pinheiros-bravos, entrei no mar e notei que o relicário movente da água marinha não é da ordem do útil. E porque somos improvisos de céu profundo, somos rapsodos, e hoje anoitece mais um domingo em Villa da Concha. O ponto de orvalho recolhe e apazigua o vendaval. O mar não se destrói com nenhuma tempestade. Um olor de cipreste na bigorna. Lavo agruras se me chovo ervas noturnas, para que os meus olhos d’água possam escutar os belos versos de Ungaretti:

No olho
de mil e uma noites
repousei

Barnaby Hall, 1997


Aqui, na Casa de Água, ao lado de Lucana que acabou de adormecer, descanso breves minutos, enquanto enrolo o meu cigarro com as folhas finas de um pequeno livro de mortalhas. Fiz muitos pôncios para amar Lucana, alguns pilatos, depois tive que lavar as mãos no chuveiro. Troquei Lucana por Barrabás, mas logo me arrependi e fui sorver, com ela, um chá verde numa xícara de linhagem. Composição para ouvido: eu preciso aprender a empurrar a chuva até a vidraça que a chuva quer molhar. Escuto a nostalgia que a chuva insiste em esquecer junto à porta. Mais molhada que o mar, a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas, desfaz meus cabelos, minha cabeça, a chuva só deixa intacto o gelo do coração que o sopro de Lucana abrasaria. Do tapete, antes de ir embora, recolho as garrafas de vinho e as pontas da erva-cidreira que fumamos desvairados, eu e Lucana, a tempestade lá fora, o perfume intenso do mar salgado lá fora, Órion e Sirius lá fora e, aqui dentro, acasos e cantigas no sereno oásis, eu e Lucana na Casa de Água escutando a última conta do rosário de neblinas.

Barnaby Hall, 1996


Um conto de K.: “A curva irônica de Gauss: relâmpagos de puro cristal aclaram os dois jardins da Babilônia. Um jardim é Quf: capacidade de escutar a santidade de nossa natureza. Outro jardim é criatura que ondula cristais sonoros: o mar grego okeanós. No ano 1004, em algum palácio do oriente, dentro do quarto junto do pomar, o califa al-Hakim proibiu a venda do peixe sem escamas e grafitou nos muros escalavrados um estudo sobre óptica. O califa al-Hakim convidou para a corte o astrônomo al-Haytham, que seguiu o rastro da Teoria da Intromissão, de Aristóteles – segundo a qual “a essência do que vemos penetra surdamente no oco, vítreo e aquoso, situado no centro de cada íris –, por meio da brisa marinha.”

Grafismo de Fernando José Karl,
dedicado à Ana Peluso.
Escutar Prelude Cello Suite No. 1

http://br.youtube.com/watch?v=LU_QR_FTt3E&feature=related

Intérprete: Rostropovich.

Ver o blog
de Adriana dos Anjos

www.apaginadolivro.blogspot.com

Billie Holiday (1915-1959).
Escutar
Billie Holiday


1.http://www.youtube.com/watch?v=x4s51NC5Mxc&feature=related

2.http://www.youtube.com/watch?v=isdUlRgtwfA&feature=related
Ver 12 sombras solares
de Toni Frissell

1959


1950


1958


1958


1955


1957


1954


1964


1960


1950


1951


1940


Ver 2 pinturas
de Modigliani (1884-1920).


Ruth Bernhard, 1945


Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.

Lavar a alma ao ver o blog
Admiradores de varais,
de La Vanu

http://www.admiradoresdevarais.blogspot.com/

Dinah Washington (1924-1963), num pastel de Gary Kelley.
Escutar
Dinah Washington

1.http://www.youtube.com/watch?v=01Zm6wwkwiA&feature=related

2.http://www.lastfm.com.br/music/Dinah+Washington/+videos/+1-bonnO41j4HA