segunda-feira, 31 de março de 2008



Fábio Brüggemann
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o blog de Fábio Brüggemann

www.bloguedobruggemann.blogspot.com

domingo, 30 de março de 2008

Alberto M.


Misantropo

Teu olhar tem encantos como essa pedra ou o cheiro de ervas fervendo.

Encantos de chá ou de sangue derramado no altar do sacrifício, teu olhar.

Entrei no local sagrado onde, sob a pedra, crepitavam brasas rastejando no lastro do teu olhar.

Desde muitos séculos há leveza no lenço pendurado no varal. O vento sopra por trás e eu sou o vento através do teu olhar.

Escravizado pela alma que habita esse espelho fui, um dia, a alma distorcida desse espelho.

Alma do espelho, porta do teu olhar.

Abismo que a qualquer matéria dissipa, grito sufocado pela sombra dos teus cílios, tétrica caverna onde me desloco cristalino com ira de navalha,
torto, torpe, arranco da órbita

esse teu olhar.


Adriana dos Anjos

sábado, 29 de março de 2008

Quino



Theo Anghelopoulos
Ver Theo Anghelopoulos:
um homem velho anda na água.

http://br.youtube.com/watch?v=8hMOfrtpPF4&feature=related

Um Andy Wahrol para Marília Kubota


7 pesadelos de Roger Ballen







Um Georges Barbier para Francine Murahara


Cy DeCosse


POEMA TIRADO DE UMA OBSERVAÇÃO
DE WITTGENSTEIN
SOBRE O PENSAMENTO

Pensar é um espécie de falar?
Wittgenstein


Recite a frase:
silêncio de nenúfar na nuca

Uma vez pensando:
silêncio de nenúfar na nuca

Outra sem pensar:
silêncio de nenúfar na nuca

Então pense apenas os pensamentos
sem

palavras

Fortuna



Abbas Kiarostami
Ver Abbas Kiarostami:
a arte de fritar um ovo.

http://br.youtube.com/watch?v=LHi3TqI-D0w&feature=related

Cartier Bresson


A CÂMARA SECRETA

A câmara secreta alude ao oco do cristal,
onde respira o pavão na escada:
a sombra risca um rio na sua cauda.

Castelos e imperadores não cabem
no centro imóvel da oca câmara.
Apenas uma voz pura penetra a parede fina

do cristal e retorna rajada de paraíso.
Algumas palavras têm permissão
de sondar os augúrios da câmara secreta.

E que augúrios seriam ali no oco?
Fontes que se entrelaçam para que
--- o ar --- não cesse em nossos pulmões.

Flor Garduño


OLHO DO FURACÃO

Estou no olho do furacão,
bem no centro da tempestade,

na boca do tubarão,
no fundo do poço,

com sede e com frio,
sem oásis, sem mulher nua,

sem moeda de ouro, sem cavalo branco,
sem brisa no Saara,

estou só eu no espelho,
toco o espelho não toco em nada,

já estou sem ossos,
cara a cara com Deus,

que estava fora do olho do furacão,
observando-o com serenidade.

Herbert List


FULGOR DE UM LADO, CRISTAL DO OUTRO

Cindir o fulgor do cristal?

Não! O que cinde é o cristal,
e o fulgor aguarda no cais,

ou no cais cristal decepado em dois.

Cindir o cristal, nunca o fulgor.
Cristal é cristal, mesmo sem fulgor.

Fulgor tem nome: brevíssimo
como o poema-cristal.

Origens da escrita chinesa
TABUINHA DE BARRO

Com cálamo o mandarim fixa
a elegância do vento na tabuinha de barro.

O vento leva embora o vento.
A elegância adere à tabuinha de barro.

O mandarim lava-se de toda agonia vã,
depois adormece no areal.

Ânfora grega
PEÇA DE CERÂMICA AZUL

O que pode nos ensinar a peça de cerâmica azul?

Peça de cerâmica azul ofuscada pela sombra
de uma idéia preconcebida.

Única a existir na varanda da casa,
a peça de cerâmica azul torna azul o silêncio.

Antoinette Bucquet, 1897


O JARDIM DA SACERDOTISA

No teu corpo tu me pertences,
sete anos de brisa no cativeiro.
Foste da mesma matéria do ópio
que sorvi no cais à espera da barca.
Acerco-me de ti, música de loucos,
para queimar o pulmão nos astros.
O silêncio --- escuto-o de olhos fechados ---
conduz aos espinhos e ungüentos.
Na verdade, o pomar de abios
só existe nos sonhos do pássaro,
que aguça o tímpano e recorda
que no teu corpo a voz sem voz
habita no Jardim da Sacerdotisa,
que à noite venta, de manhã é luz.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Adolphe Braun, 1860


Um cântaro vazando água ou aquela frase de cristal
Exercícios de exílio: eu, K., sou um estranho fruto da vigília; no quintal dela respiro, indago e acredito que hei de vivificar, não indo à árvore-de-ferro do pesadelo senão por destino e de relâmpago; sou um estranho e aceito que a vigília prefira uma ninfa de coxa atlântica a essa mistura de luto e lodaçal. Estou no Jardim de Pedra da Casa de Água e alumio frouxamente o fícus: o vento dá cinco voltas em torno do fícus, enquanto penso em Schopenhauer e no real; real que pode ser um cântaro vazando água ou aquela frase de cristal pronunciada no escuro: alento vital, spiro, sopro, hálito, presença divina. E é este real (que existe de fato; verdadeiro) que dá oxigênio/aragem à Coisa; e Coisa é aquilo que insiste em sua parte real e permanece livre da representação, e talvez seja a causa das pedras, dos regatos e do céu e, sendo Coisa, é diminuído pelo significante: a essência do Vazio. Para mim e para Nietzsche, nos significantes retina, concha, Aldebarã dormem imagens, como na pedra dorme uma imagem. Algo – fontis vivi – dá forma a este outro significante: a figura Lucana da Coisa, e que é possível imaginar. A ficção é a imagem do inimaginável. O significante Lucana se instaura em certa relação com a Coisa, que está feita ao mesmo tempo para presentificar e para ausentificar. Aqui, em Villa da Concha, podemos vislumbrar o pescoço longo de um coqueiro coroado de chuva criadeira ou chuva persa.

Fortuna


quarta-feira, 26 de março de 2008

Francine Murahara


Kantele: instrumento musical construído por Polo Cabrera
Violino ao som da saliva


o sabor do ácido me desce à garganta
e o dia percorre a água na ferrugem
nos lábios férreos que beijam a estrada
vocifera um som metálico
e sua a última tinta do meu rosto
carvão-grafite na paisagem de uma janela

hoje

mais uma vez o corpo some, sim,
líquido perdido

o perfume situa o sem-sentido
vago, vazio ou mesmo fúnebre
e com o círio tento tatear-me
no clarão que insiste na brancura

e ao
torcer o azul até que a retina
tatue uma valsa
a boca saliva outro ritmo
e o olhar natimorto dança nas cordas

spalla

que orquestra uma tela, pedra ou sol,
onde aos poucos um som abre
o breu
pulmão fígado pâncreas coração
rígidos em câimbra

um vermelho-pálido se mistura a bracurazul
não mais rosto, não mais sangue
umas vozes que se perdem ao sinistro som

ao mundo

som e saliva, violino, voz
meu não-rosto não mais me assusta
se ainda me debato sobre o que se perde
pura resistência

porque já comi o próprio timbre
mordi a língua
amputei pernas e braços
cedi órgãos para uma tela
abandonei o sangue noutro corpo

e

a música que se impõe
desce à garganta engolindo cores e cordas

da voz a última lembrança:

anos carregando corpo ao som férreo de fantasmas



Marco Vasques

Les Krims


Doutscha
Chuva torrencial
nos arredores de Bremen


Chuva torrencial lá fora e aquela mulher de nome estranho – Doutscha – acende uma erva.

O vinil rodando na vitrola.

Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de longos cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:

– Neste momento – ela diz como quem se surpreende – a neve, olha a neve...

Tento conversar:

– Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos.

– Não, a neve, olha a neve...

Pois Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados das casas e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da ampla árvore nessa rua de Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa com a pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva, escutar Chet Baker.

Ou talvez Doutscha só exista nesta narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.

Tenho, muitas vezes, o hábito de fumar cigarros Gauloises.

Que me é esse disco que flue na vitrola um Chet Baker, salvo o instante ocasional em que a agulha toca a pele do vinil e a música, senhora das minhas horas, consola os dias noturnos da melancolia?

Trata-me bem, Doutscha, escuta-me com doçura, salvo nos momentos bruscos em que, por tédio ou inércia, eu te apunhá-lo a clavícula com a faca enferrujada.

Desconhecida, sim, és, Doutscha, mas por que me preocupa um símbolo, uma escada de pedra, um mergulhar o pão no café, e a razão, Doutscha, o que é?

Leio aqui O Livro Negro, de Thamès Carda: “Para mim a morte explica-se como História Natural, como aquilo que tornou possível o pensamento. Se temos uma meta, parece-me que só pode ser a morte. Tudo o que se diz é sempre sobre a morte. O nosso nascimento lança-nos numa amnésia, ávidos de mar grosso e de palavras, ávidos de algumas sombras de amor. Tentamos ressuscitar a xícara e fracassamos, o fôlego e fracassamos, tentamos ressuscitar o que somos nesse instante e fracassamos, porque não se trata de ressuscitar ou não, trata-se de sumir numa Fuga – de Johann Sebastian Bach –, para não se sabe onde, para onde não se sabe mais”.

À sombra de um ventilador, numa casa pequena e repleta com vasos de plantas, lembro-me de tua nudez, Doutscha, lembro-me dela no futuro com a saudade que sei que terei.

Nos arredores desse pequeno jardim buscarei a chuva.

De meu coração, eu pressinto, uma carpa de fogo escapa em andante lentíssimo e fura a cortina do quarto que a brisa estufa de leve e, pelo buraco que a carpa deixou na cortina, eu não verei o vento que não vejo agora.

terça-feira, 25 de março de 2008

Cartier Bresson


As coisas, quando as olhamos, não são mais externas, já estão em nós, são nós mesmos, voltam a ser externas com nossas palavras, voltam transformadas em coisas mortais. As coisas, quando as olhamos, não são mais externas, mulher nua em chamas na cama chuvosa, por exemplo, quando olhamos, violoncelo que se fere com um arco, mulher nua não mais externa mas nós mesmos.

Só pode haver mistério se uma das barcas é branca.

Mistério: respirar além dos ossos a barca que é branca nem o mar sente em suas águas
a
barca

Mino


domingo, 23 de março de 2008

Frederic Ohringer


A DEFORMAÇÃO ORGANIZADA DA LÍNGUA COMUM
PELA LÍNGUA POÉTICA

Um riacho de serpentes no cérebro, um vaso de porcelana com verbenas. O estranhamento se há cascalho: aqui as palavras têm plantas. Fisgo do cristal o inaudível, alago a música da mente e, à sombra do salmão ciumento, me recolho.

Imagino que sou neblina de Issa, neblina vivificante, isca sou de instrumentos arcaicos que crescem em plantações protegidas por cercas de bambu:
tarolas,
ravanastrões,
sambucas,
arquialaúdes,
tchés,
turlurettes,
magrephas,
pandoras,
hidraules.

Pasolini (1922/1975)
Ver Pasolini lendo um poema
para Ezra Pound

http://br.youtube.com/watch?v=0YJSG1C3sF8&mode=related&search=

sábado, 22 de março de 2008


Dziga Vertov (1896/1954), de boina junto à câmera

Cena do filme "O Homem da Câmera de Filmar" (1929), de Dziga Vertov
Denis Arkad'evic Kaufman nasceu em Bialystok, Polônia, no ano de 1896. Morreu na cidade de Moscou, em 1954, quando esta ainda fazia parte da União Soviética. Curiosidade: o pseudônimo Dziga Vertov tem relação com o trabalho no cinema. Dziga vêm da onomatopéia de girar a manivela de uma câmera; já Vertov é uma derivação do verbo girar (ou fazer rodar), em russo.

O seu filme O Homem da Câmera de Filmar é um marco na história do cinema como documentário reflexivo. Filma o cotidiano de cidades russas, principalmente Moscou, com criatividade e lucidez. Planos pensados e repensados são, por si sós, uma aula de cinema. Para associar o olho humano ao da câmera usa, por exemplo, planos de uma persiana, numa metáfora da retina, do diafragma da objetiva, do cine-olho, capaz de apreender o real. O filme tem a duração de 68 minutos.

Filho de judeus intelectuais que trabalhavam numa livraria da pequena cidade polonesa de Bialystok, Dziga Vertov só começou a se envolver com cinema depois que se mudou para Moscou. Ele ficou conhecido por seu trabalho experimentalista envolvendo documentários e, desta maneira, influenciou gerações de cineastas tais como Stan Brakhage e Jean-Luc Godard.
Ver o clássico russo
O Homem da Câmera de Filmar (1929),
de Dziga Vertov.

Uma dica:
clique no item Menu,
do lado direito do vídeo do You Tube,
e você poderá ver o filme completo.

Imperdível.

http://cinehighlife.blogspot.com/2008/01/o-homem-da-cmara-de-filmar-3-fev-em.html

Marco Vasques

sexta-feira, 21 de março de 2008

Flauta sem boca à procura de música


ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele

agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade

na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani
e que nunca foi pintado

na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer

e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.



Marco Vasques

John Cage (1912/1992)
Escutar 3 obras-primas
de John Cage


Variations III (1962-63)

http://br.youtube.com/watch?v=LwsgAyZvgwY&feature=related


27 sounds manufactured in a kitchen - John Cage

http://br.youtube.com/watch?v=mGrhL49-YQw&feature=related


Marcel Duchamp and John Cage

http://br.youtube.com/watch?v=mJ5Cl30_KvE&feature=related



John Milton Cage nasceu em Los Angles no ano de 1912 e morreu na cidade de New York em 1992. Compositor musical experimentalista e escritor norte-americano. É o autor da famosa peça 4'33", pela qual ficou célebre. Criada em 1952, a peça consiste em 4 minutos e 33 segundos de música sem uma nota sequer. Foi um dos primeiros a escrever sobre o que ele chamava de música de acaso --- e que outros decidiram rotular de música aleatória. Também ficou conhecido pelo uso não convencional de instrumentos e pelo seu pioneirismo na música eletrônica. Participou do movimento Fluxus que abrigava artistas plásticos e músicos. Cage também era um colecionador de cogumelos.

Não escutar a obra-prima
de John Cage:
4'33''
não tocada por David Tudor

http://br.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY&feature=related


Ler aqui tudo sobre 4'33''

http://www.alb.com.br/anais16/sem14pdf/sm14ss04_08.pdf

Um Manuel Gago para Dennis Radünz


7 olhares humanos

Hermann Widensohler, 1900


Elliott Erwitt


Dick Swift


Carl Uytterhaegen


Anon


Andrej Glusgold


André Kertész




Míriam Santini de Abreu
A convite do jornalista Eduardo Schmitz, Míriam Santini de Abreu, uma das editoras de Pobres & Nojentas (www.pobresenojentas.blogspot.com), está escrevendo uma coluna mensal para o jornal Observatório, que circula em Taió, Pouso Redondo e Salete --- cidades de Santa Catarina. Leia agora duas crônicas desta talentosa jornalista gaúcha:

http://www.observatorio.jor.br/frame/frames_18_19.htm

http://www.observatorio.jor.br/frame/frames_14_15.htm

Sem palavras


O gato e o rato empalhados à entrada do Museu de Taxidermia, em Boston/EUA

Yasujiro Ozu (1903/1963)
Ver Yasujiro Ozu

http://www.youtube.com/watch?v=c-R8o-GKjFY&feature=related

Fernando Pessoa (1888-1935) andando em Lisboa
Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Em tudo que se diz – poesia ou prosa – há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém menos que uma só não creio que possa ser.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela.

Na prosa mais propriamente prosa – a prosa científica ou filosófica –, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante.

Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria.

Na prosa amplamente emotiva – aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia – há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso.

Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível.

A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia. Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim.

A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.


Fernando Pessoa

quinta-feira, 20 de março de 2008


A mais que bela Clarissa, filha do aedo de Cacupé: Vinícius Alves,
autor do blog www.lesma-lerda.blogspot.com