segunda-feira, 9 de junho de 2008

Não aos naufrágios, não à morte que tinge de nada nossos lençóis assírios de raiz amarga. Sim aos sóis nas torres bizantinas, há tantos, se aprofundam em nossas águas, em nossos mantras. Não fui sonhado para a eternidade, disso eu sei com certa amargura. Fui sonhado para ser o sonhador de certa matéria absurda e diamante. Disso eu nada sei – de estar aqui. E quase me iludo com esse chumaço de rosas nas vértebras, rosas nunca criadas por mim – eu – a mais absurda das carnes e que arde paralisa chama e sonha em ser nunca a morte, mas as rosas. Em meio ao roseiral de Esmirna, não sabe se dorme ou se está morto. É brisa na folhagem, crina molhando-se nas águas do vento. Acorda. A imagem da noite, ante seus olhos, transparente tapeçaria. Na concha da mão a rosa – ária? Luz de sua luz suaviza. Mas não suaviza da alma o incêndio que traz sob o vasto céu desse lugar. Lugar onde alguém lhe diz que é preciso, com folhas de malva, cuidar o que no pó está quase morto, o que no pó nunca mais águas do vento. O enterrado, três dias depois, sem ar, igual peixe com cinco lepras, o enterrado do cemitério do Cariri é perito em acordar sem grandes consolos e vigia, do fundo do coração que já não possui, vigia que luz angelical é esta que amadurece os olhos dos ainda vivos, dos que, mesmo vivos, parecem enterrados, sem vento
despedaçando nas cabeças, que levam como cavalos pesados, pesados de não ser o que sonharam, e o que sonharam era tão pouco, se comparado com o que ardia na sombra e, às vezes, os vivos chamava de transparência, se já não fosse mulher mergulhando no oceano para esquecer. Nesse deserto, o que é da turmalina é da turmalina, sim, como pevides claras circundadas de dureza natural, a da pedra que é, turmalina que respira. A turmalina – silicato complexo – mineral exposto a crivos pluviais, e a tantos outros crivos, também de sombra e areia, de cascos de camelos e sol alto, sol: concha ardente que incide no tímpano da turmalina, tímpano acordado numa das dunas desse deserto, escutando o quê? Talvez o jardim que se abre sob o areal de Sahel, e é jardim que não se vê com olhos, nem com a imaginação, se adivinha com palavras. Sombra de pássaro no muro e leve a sombra assim diamante: claridade que foi do sonho antigo mais que pássaro, mais que sombra, e leve tua respiração é o fundo de um animal com olho rosado: rosas então para todo lado, rosas no sonho, no peixe, na sina, rosas no assombro do pássaro que é, com pés no telhado, anjo que não sabe a fala humana, porque a fala é o lúmen da pétala e cordas vocais de pássaro, pétalas, se no sonho Deus se sonhar pássaro. Para enxugar o sono do enfermo, materializo estrela e vento, lavo louça entre sombras do quintal abandonado. E é pedra gigantesca no peito e sono do enfermo, se o acossa a esfera bravia de inexistir, e ele, mesmo sendo contrário a isso, tem – agora – que cuidar de outras luzes, sob um outro céu, céu sem palavras ou história pessoal, sol na face, peixe perdido, porque o enfermo morreu faz uma hora, sem carícia, café,sem música, sonho, sem uvas, sem deus, porque para o enfermo bastaria um pano de linho trançado com aquele aroma de infância, bastaria um pano que lhe enxugasse a morte. Francisca – com traços de asas – tão simples, por certo o colar de um sol a ressuscita. Suporta a força ascensionária por longos pedregais. Nada disfarça o apuro consumado do amor, que a existe com estremecimentos de virgem. Nas perguntas caladas eu a persigo, ela me responde com o mito da tempestade. Descemos, dois pagãos, ao convés do navio: Francisca me fala de cardumes de anchovas que se alongam pelas águas frias de nossa inexistência. Francisca me olha, busca nos meus olhos, não as ruínas, mas o reflexo das ruínas e pergunta: – "Depois de tudo, para onde vai o aroma?" Um dos marinheiros responde: – "Para o próprio aroma". Esfinge ao sol, enquanto durmo. Se eu acordasse agora, então o quê? Um olho aberto, outro fechado, a esfinge sonha com meus olhos. Meus olhos nessa luminância dos olhos da esfinge de cal. Meus olhos são alísios, alívios nos olhos da esfinge no pátio. Esfinge apagando altas estrelas, que depois meus olhos reacendem. E por que esfinge, por que olhos? Seria mais simples não haver vida – nenhuma palavra – Seria mais simples não morrer.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Ler "Porto de abrigo",
coletânea de Poesia Portuguesa.

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