segunda-feira, 9 de março de 2009


Frida Kahlo (1907-1954).

Morreu Frida Kahlo, para não sentir dor. E aquilo que ela foi, continua.


Fernando José Karl,

à Frida Kahlo, com amor

Frida Kahlo.

Viva la vida


Último quadro pintado por Frida Kahlo.

Só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além.

Cioran

Música In hommage à Frida Kahlo

http://www.youtube.com/watch?gl=BR&hl=pt&v=UppX6vP3c4g

Henri Cartier-Bresson (1901-1999)

O corretor de imóveis me diz que a piscina dessa casa foi construída a pedido de Gôngora no século 18 por isso mergulho nas águas limosas da piscina de Gôngora algumas letras d’água passam por dentro de ti señora doña segoviana cuyos ojos están llorando nado de costas nas águas esverdeadas da piscina de Gôngora al sol ninfa mía de flores despojando el verde llano ondeábale el viento mergulho mais um pouco para tocar os azulejos lá embaixo onde a piscina é claro honor del líquido elemento toco os azulejos dulce arroyuelo entre la yerba se chovesse sobre a piscina de Gôngora eu ficaria sob as águas durante mil anos los ojos llueven como se nada houvesse ocorrido estas plantas a Alcides consagradas algumas reunidas em torno da piscina a música de aquél ángel fieramente humano retorno por um instante à superfície pra escutar onde se afoga o sonho a respiração védica protege a sombra mergulho de novo na soturna piscina de Gôngora para recitar essa fonte que aguarda ser pronunciada enquanto um relâmpago fende o ar devo sair da piscina tomar uma ducha depois adormecer para que a alma saiba que o que está besando unas manos cristalinas está soñando en aquellas perlas finas

Andrej Glusgold, 2003

A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.

Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava – o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais – e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam! O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava. Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir? A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem a essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer. Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.