quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Anon


Cartier Bresson


Martinus

Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra para não ter dúvidas da obediência dela.

Martinus, os moradores de tua cidade me chamam de Senhora mestra, não porque te obedeço, mas porque os curo.

Martinus, o único bem que você vai deixar é a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo.

E quando estiveres dentro do túmulo, redes de bardana serão armadas para agüentar o calor nas alcovas desmanteladas.

Ver Ingrid Bergman

Matisse


Betti Mautner


A carmelita descalça e o copo d’água
Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis.
Herrenschmidt


Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, clavículas que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.

Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se o foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água é meu deus. Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para perguntar:

– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?

No locutório o único adorno: um crucifixo de prata. Atrás da cortina preta, a mulher descalça...

Paul Delvaux


Édouard Boubat


Monteverdi e a praia de Pinheiros-bravos, que é um declive arenoso e confina com os ventos e a neblina vivificante. A língua natural e o ato de respirar: um só enigma. Para proteger Lucana do sol e da chuva, K. construiu uma espécie de caramanchão e, à sombra dele, colocou um banco de pedra e um frasco d’água. Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos, procurando remanso, coqueiro e céu, mas não encontra. O espírito impuro, antes de ir ao deserto, decide verificar se a sombra do caramanchão é mesmo de fresca ramagem. Lucana sopra na pele do espírito impuro, até que a pele seca se torne avena suave que daqui se escuta. Pensa Lucana: “Devo ancorar minha barca perto do caramanchão de rosas brancas e longe do sabre no mais fundo. Se os fariseus, ressoantes e vazios como tambores, ousarem insinuar que aqui não devo ancorar minha barca, logo uma irada torrente me encharca cabelos e pulmões e as árvores altas vergam até às pedras para que sumam os fariseus nas chamas de uma sonata de Monteverdi”. Pequena descrição dos talha-mares, de coloração escura, na praia de Pinheiros-bravos: se próximos às águas da neblina, quase é certo que, sendo talha-mares, nunca leram livros nem ajoelharam diante do banco de pedra e do frasco d’água, mas, sabe-se que eles têm o hábito de voar junto da água, alimentando-se de tainhas e plantas subaquáticas. Sugeri à Lucana que fôssemos às termas marinhas. Ela concordou e rezou o preceito de Buddah: “Antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa”. Quando chegamos às termas, ciprestes vieram ao nosso silêncio. A única Lucana que ali estava ciciava no tímpano do salmão transparente – salmão no leito líqüido da onda. Em torno havia um mar cativo de espumas. Naquilo pedras o mar molhava: um grosso aguar. A náutica Lucana velava o incensário de ouro e fogo, abandonava a língua no apuro do açude. O gongo a serenava. Antes que o primeiro salmão se molhasse, o salmão já estava molhado. Ao mesmo tempo em que a neblina sumia por entre as árvores, eu e Lucana, afundados no vapor oloroso das termas marinhas, éramos duas cinzas frias remoçando n’água.

Ver Humphrey Bogart e Ingrid Bergman

Botero



Ver Buster Keaton

Dae Woong Nam


Chuva torrencial
nos arredores de Bremen


Chuva torrencial lá fora e aquela mulher de nome estranho – Doutscha – acende uma erva.

O vinil rodando na vitrola.

Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de longos cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:
– Neste momento – ela diz como quem se surpreende – a neve, olha a neve...

Tento conversar:
– Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos.
– Não, a neve, olha a neve...

Pois Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados das casas e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da ampla árvore nessa rua Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa com a pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva, escutar Chet Baker.

Ou talvez Doutscha só exista nessa narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.

Georgia O'Keeffe


SEGUNDA DESCRIÇÃO
DO JARDIM ARCAICO DE NAFZAUÍ
Entre Aldebarã e as rosas de maio

Deitado na folha longa do coqueiro
Wittgenstein passa a mão no vento
depois jorra cristalinos
em teus cabelos estende sobre cercas e arbustos

aldebarã

deitado na folha longa do coqueiro
Wittgenstein retalha o vento com a peixeira
olha para o solo crestado três metros o separam

das rosas de maio

se ele caísse da longa folha cairia nos braços do mar



Pergaminho chinês
Absinto

PRIMEIRA DESCRIÇÃO
DO JARDIM ARCAICO DE NAFZAUÍ
O nascimento da potência do eu profundo

Longínquo – entre sóis emanados do absinto –
imprimiste trevo de quatro folhas
na guelra do tubarão
que no jardim perfumado da tarde ala-se

por causa da potência que lhe oferenda o trevo

ao paraíso imerso na imensa curva do vento
vento que paira vinte cedros
enverdecidos de eternidades
não de milagres

aqui as ondas altas jorram entre arrecifes

o tubarão se transparenta ao escutar
ave-do-paraíso nítida no alto coqueiral
onde pariste faíscas e lascas de palavras

pelo mar da garganta

Dragão asteca

ABRI-VOS, PORTAS DE OURO, ANTE MEUS AIS!

O que adorei até o osso, onde respira?
Ido, dissoluto, se estende ar suave
acima dos telhados da Casa de Água.
No Oldsmobile verde-claro da ilusão

passa Georgia O’Keeffe mariscando
portas d’ouro entre duas ondas do mar.
A çankha hindu afugenta demônios,
excita os deuses benévolos.

Toda devastação traz o germe de seu idílio.
O coroado nó de fogo e o jasmim
urdem o córrego nupcial.

Quassar a raiz das cactáceas no areento.
Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas,
a barca de Bach nascente.