segunda-feira, 20 de abril de 2009
Água de Lucana coroa a penumbra de K., que confessa: “Encontro, num dos becos aqui de Villa da Concha, dias meus vorazes que eu havia esquecido nas nuvens, dias mais ligeiros do que cervos e ventos que somem entre sombras e arvoredos”.
Enquanto olha as amendoeiras da rua onde mora, K. tenta esquecer que somos cadáveres esfolados com o céu ou cadáveres molhados com cúpulas de pedra. Porco: por dentro, o corpo dele é tão parecido com o do homem, que deveria ser utilizado nos hospitais no estudo de anatomia. Desde aquele domingo K. é perseguido pela impressão de que as cinzas o espiam. Para curar o porco em seus cancros, lava-os com láudano, bálsamo de ungüento, desinfetante lisol. Para curar o Vazio K. passa a língua
no salitre perfumado do pequeno bosque
no pequeno bosque de ciprestes passa a língua
no
pequeno
bosque
de
ciprestes
MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA
Um sol de gelo paira a Casa de água: o que eu adoro é ninfa imaterial, agreste brancura da flor de mandacaru, dançar na Casa de água de Georgia O’Keeffe ou sonhar o pescoço de Vishnu, depois rabiscar águas com barcas brancas. O sonho humano se abrupta nos escolhos. Georgia O’Keeffe lambe, com língua de vaca,
o sal do gramofone. No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de água.
26 aforismos
em torno da poesia
1. Permanece um mistério o fato de que vivemos em estado permanente de linguagem. A poesia é o instrumento ideal para captar este mistério.
2. Mu Ga não é parar o pensamento: é perceber o pensamento.
3. Cada vez mais a persistência da idéia de poesia radical entendida em seu sentido etimológico, do latim radix, raiz, base, fundamento. Uma poesia que investiga sua própria ocorrência, ramificações, vis-à-vis seu encontro com o mundo, indo na raiz do problema: para o poema, esta raiz é a palavra.
5. O desafio está em não cair numa metalinguagem barata. Ou solipsismo ("não há nada fora de minha mente"). Ao contrário, o poema é um encontro em nosso território comum, nosso habitat.
6. Poeta é quem que provoca música com os vocábulos. E afasta a afasia. Certa aversão pela idéia difundida pelo senso-comum da vida (e da poesia) como algo contínuo. Poemas são seres vacilantes, como animais, Organismos, e parecem estar o tempo todo querendo incorporar o caráter fragmentário e material da experiência. Por isso, parecem muitas vezes "incompletos".
7. Se "poesia é a promessa de uma linguagem" (Hölderlin), então o poema é um não-lugar, uma utopia. Seu sentido é seu movimento.
8. O poema é um ultraje (outrage), um contra-texto.
9. De olhos fechados: o universo é vermelho.
10.
Você diz
que não há nada de novo
sob o sol.
Isso pode valer para o sol,
mas não para nós.
(apud Apollinaire)
11. Um "eu" que é um olho, o olho que é um outro, o outro que é um. A consciência da consciência. Um teste de solitude.
12. Poder pensar, como Paul Cézanne, que as palavras é que se pensam através de mim.
14. Nos fala, nos media, nos habita. Sempre a caminho. Não há como escapar. Nelas estamos em nossa única casa, ou fora, ou estamos a sós.
15. Todas as abordagens poéticas (seja através de iluminuras, personas, objetivos correlativos, colagem, simultaneismo, pastiche, ostranenie, ideograma, non-sequitur) desembocam, por operações distintas, na grande questão: o espaço habitado pela poesia enquanto matéria mental, entre palavra e mundo. Entre estar mudo e ser mundo.
16. O nome do ventríloco era Eulírico. ("Já meu nome é eutro: o intervalo entre palavra e mundo").
17. O poema nasce enquanto o procuramos.
18. Como numa história de detetive, o poema, hoje, é um enigma. Seu crime começa já nas primeiras palavras. O poema nada mais é que uma seção de correlatos do sentido suspensos entre pistas falsas, fragmentos de perfis, frustrações de expectativas, que apontam inequivocamente para sua própria aparição & desaparição. O nome dessa luta invisível é o sentido.
Whodunit?
19. Raízes rebentam o ventre da terra: pensamento selvagem.
21. Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como experiências.
22. Produto e processo, num poema, têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo desvirtua o palácio da sabedoria.
23. O desafio tem sido esse: investigar como se dá o processo de transferência do mundo "real" ao mundo "poético". Me interessa este momento único que se dá na percepção: no choque do "dentro" com o "fora" (Como aquilo virou isto?). E o poema seria exatamente a tradução simultânea desta percepção em palavra, energia, usina, poesia. E o poema surge como o resultado desse atrito entre consciência e mundo, fruto dessa tensão e, antes que me esqueça, desse prazer.
24. O momento em que o poema se fecha é o momento em que ele se abre para o leitor.
26. Vai ver a poesia seja uma necessidade estética da consciência.
(Apud Macedonio Fernandez).
Rodrigo Garcia Lopes
Escutar
Rodrigo Garcia Lopes
http://www.garageband.com/song?|pe1|S8LTM0LdsaSgZFm0ZGE
Faixa do CD POLIVOX
(independente, 2001)
Blog Estúdio Realidade: