segunda-feira, 20 de abril de 2009

Quino


Um grafismo de Fernando José Karl.

Anônimo, 1905

Água de Lucana coroa a penumbra de K., que confessa: “Encontro, num dos becos aqui de Villa da Concha, dias meus vorazes que eu havia esquecido nas nuvens, dias mais ligeiros do que cervos e ventos que somem entre sombras e arvoredos”.

Enquanto olha as amendoeiras da rua onde mora, K. tenta esquecer que somos cadáveres esfolados com o céu ou cadáveres molhados com cúpulas de pedra. Porco: por dentro, o corpo dele é tão parecido com o do homem, que deveria ser utilizado nos hospitais no estudo de anatomia. Desde aquele domingo K. é perseguido pela impressão de que as cinzas o espiam. Para curar o porco em seus cancros, lava-os com láudano, bálsamo de ungüento, desinfetante lisol. Para curar o Vazio K. passa a língua

no salitre perfumado do pequeno bosque
no pequeno bosque de ciprestes passa a língua
no
pequeno
bosque
de

ciprestes

Gustave Doré (1832-1883)

MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA

Um sol de gelo paira a Casa de água: o que eu adoro é ninfa imaterial, agreste brancura da flor de mandacaru, dançar na Casa de água de Georgia O’Keeffe ou sonhar o pescoço de Vishnu, depois rabiscar águas com barcas brancas. O sonho humano se abrupta nos escolhos. Georgia O’Keeffe lambe, com língua de vaca,
o sal do gramofone. No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de água.

Robert Park Harrison, sem data

Aqui, na Casa de Água, ao lado de Lucana que acabou de adormecer, descanso breves minutos, enquanto enrolo o meu cigarro com as folhas finas de um pequeno livro de mortalhas. Fiz muitos pôncios para amar Lucana, alguns pilatos, depois tive que lavar as mãos no chuveiro. Troquei Lucana por Barrabás, mas logo me arrependi e fui sorver, com ela, um chá verde numa xícara de linhagem. Composição para ouvido: eu preciso aprender a empurrar a chuva até a vidraça que a chuva quer molhar. Escuto a nostalgia que a chuva insiste em esquecer junto à porta. Mais molhada que o mar, a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas, desfaz meus cabelos, minha cabeça, a chuva só deixa intacto o gelo do coração que o sopro de Lucana abrasaria. Do tapete, antes de ir embora, recolho as garrafas de vinho e as pontas da erva-cidreira que fumamos desvairados, eu e Lucana, a tempestade lá fora, o perfume intenso do mar salgado lá fora, Órion e Sirius lá fora e, aqui dentro, acasos e cantigas no sereno oásis, eu e Lucana na Casa de Água escutando a última conta do rosário de neblinas.

Pedra escrita.
NOÇÕES DE GRAMÁTICA
(Origo et fons)

Essa frase tem contém dois verbos.
Essa frase tem repolho seis palavras.
Essa não é uma completa.
Essa também.

Caroline Hyman, 2006

números

a primeira prímula

o segundo copo de gim

o terceiro vento

na cortina do quarto de dormir

o quinto dos infernos

o sexto patriarca zen

o sétimo sentido

Anônimo, 1920

Crânio carcomido pela Syphilis.


Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos.

William Lesch, 1988



Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Shânkara Lis, minha filha

Kerik Kouklis, sem data

Mu Ga

26 aforismos

em torno da poesia

1. Permanece um mistério o fato de que vivemos em estado permanente de linguagem. A poesia é o instrumento ideal para captar este mistério.

2. Mu Ga não é parar o pensamento: é perceber o pensamento.

3. Cada vez mais a persistência da idéia de poesia radical entendida em seu sentido etimológico, do latim radix, raiz, base, fundamento. Uma poesia que investiga sua própria ocorrência, ramificações, vis-à-vis seu encontro com o mundo, indo na raiz do problema: para o poema, esta raiz é a palavra.

4. A abstração é a natureza da mente, não a mente um reflexo da consciência.

5. O desafio está em não cair numa metalinguagem barata. Ou solipsismo ("não há nada fora de minha mente"). Ao contrário, o poema é um encontro em nosso território comum, nosso habitat.

6. Poeta é quem que provoca música com os vocábulos. E afasta a afasia. Certa aversão pela idéia difundida pelo senso-comum da vida (e da poesia) como algo contínuo. Poemas são seres vacilantes, como animais, Organismos, e parecem estar o tempo todo querendo incorporar o caráter fragmentário e material da experiência. Por isso, parecem muitas vezes "incompletos".

7. Se "poesia é a promessa de uma linguagem" (Hölderlin), então o poema é um não-lugar, uma utopia. Seu sentido é seu movimento.

8. O poema é um ultraje (outrage), um contra-texto.

9. De olhos fechados: o universo é vermelho.

10.

Você diz

que não há nada de novo

sob o sol.

Isso pode valer para o sol,

mas não para nós.

(apud Apollinaire)

11. Um "eu" que é um olho, o olho que é um outro, o outro que é um. A consciência da consciência. Um teste de solitude.

12. Poder pensar, como Paul Cézanne, que as palavras é que se pensam através de mim.

13. A natureza nos desconstrói sem que notemos, e a noite restaura a memória das percepções que usaremos, no dia seguinte, para reconstruir a natureza e a nós mesmos.

14. Nos fala, nos media, nos habita. Sempre a caminho. Não há como escapar. Nelas estamos em nossa única casa, ou fora, ou estamos a sós.

15. Todas as abordagens poéticas (seja através de iluminuras, personas, objetivos correlativos, colagem, simultaneismo, pastiche, ostranenie, ideograma, non-sequitur) desembocam, por operações distintas, na grande questão: o espaço habitado pela poesia enquanto matéria mental, entre palavra e mundo. Entre estar mudo e ser mundo.

16. O nome do ventríloco era Eulírico. ("Já meu nome é eutro: o intervalo entre palavra e mundo").

17. O poema nasce enquanto o procuramos.

18. Como numa história de detetive, o poema, hoje, é um enigma. Seu crime começa já nas primeiras palavras. O poema nada mais é que uma seção de correlatos do sentido suspensos entre pistas falsas, fragmentos de perfis, frustrações de expectativas, que apontam inequivocamente para sua própria aparição & desaparição. O nome dessa luta invisível é o sentido.

Whodunit?

19. Raízes rebentam o ventre da terra: pensamento selvagem.

20. A prosa parece se traduzir em ser vidro transparente, enquanto a poesia revela manchas de mão no vidro, trincas, poeira, as imperfeições da superfície.

21. Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como experiências.

22. Produto e processo, num poema, têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo desvirtua o palácio da sabedoria.

23. O desafio tem sido esse: investigar como se dá o processo de transferência do mundo "real" ao mundo "poético". Me interessa este momento único que se dá na percepção: no choque do "dentro" com o "fora" (Como aquilo virou isto?). E o poema seria exatamente a tradução simultânea desta percepção em palavra, energia, usina, poesia. E o poema surge como o resultado desse atrito entre consciência e mundo, fruto dessa tensão e, antes que me esqueça, desse prazer.

24. O momento em que o poema se fecha é o momento em que ele se abre para o leitor.

25. A idéia tradicional de prosa, para mim, é que o texto parece nos colar numa temporalidade, um estado absortivo, com as palavras quase parecendo passar transparentemente da página para a mente, ("uma câmera filmando tudo isso", sem erros de continuidade), enquanto a poesia atua com mais freqüência em saltos, cortes, surpresas, desconstruções sintáticas, frustração de expectativas, associações, conexões, desconexões.

26. Vai ver a poesia seja uma necessidade estética da consciência.

(Apud Macedonio Fernandez).

Rodrigo Garcia Lopes

Escutar

Rodrigo Garcia Lopes

http://www.garageband.com/song?|pe1|S8LTM0LdsaSgZFm0ZGE

Faixa do CD POLIVOX

(independente, 2001)

Blog Estúdio Realidade:

www.estudiorealidade.blogspot.com

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.


Paulo Leminski