quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Vista aérea da praia da Ilha


ILHA DO ARVOREDO

Certa mulher, mas não esta ou aquela,

porque me refiro à que vive na ilha do Arvoredo
– nas noites perigosas –

é música atravessando o muro
TRAVESSIA

Só pode haver mistério se uma das barcas
é branca

mistério: respirar além dos ossos

a barca
que é branca

nem o mar sente em suas águas

a
barca



SATORI

Com o leque branco Hokushi abana
carpa
no
lago
abafado.

Alma de Hokushi:
o
leque
branco.


MAKOTO
(Verdade, sinceridade)

Faço uma linha: minha mão desaparece
se
toco
o


papel


Se a palavra é sopro e sopro é vida.
Shakespeare



O que pode haver no infinito? Pedras de Oxum – ocas – com luz por fora, que a luz de dentro, nunca vista, amadurece outras paragens. Na colina um cavalo sonha: infinito move seus músculos. Uma concha no céu marinho: infinito contra infinito. O que pode haver no infinito? O que vemos por fora: luz! O que só vemos no fim: x, e uma outra luz já iluminou. A língua mordaz, viperina, de Anaxágoras: “Súbito nos cansamos de tudo: de pôr-do-sol, de repolho, de amor”. Havia um príncipe assírio que furava os olhos de seus súditos, e depois os enterrava sob as árvores. Machucado pelo azul forte do meio-dia, o príncipe vacilava entre sombras, sob o guarda-chuva branco que o protegia do sol bebia um copo de absinto com alegria de menino. Observo a barca Nautikon – antiga de matéria – sob quatro raios. Algo é! Sensação: Nautikon calcária, rasa de água, ampliada de secura. O que é? Pensamento: Nautikon sem imagens, enodoa o vazio com mais vazio. Devo aceitá-la ou não? Sentimento: Nautikon, aceito-a, eficácia nua, mais silêncio que fogo. De onde vem e para onde vai? Intuição: Nautikon vem da exatidão que a construiu. Não vai, permanece no ar. Oculto na ramagem do que rascunho, respiro metade xamã, metade pesadelo. Rascunho quintal para garças e mar, enquanto o reino nublado, na vigília, se desfolha. O Rei que não existe, quando escuta o aguaçal, recebe o pensamento do aguaçal. Depois vai arrancando de muros rentes ao palácio mil sóis ali avoantes. O que eu sei dos manuscritos do tímpano é que a matéria imaterial faz refém a matéria. No papiro de Stephanos – hermetista do século 7 – a palavra é uma lasca da voz do Rei que não existe, fundida em aguaçal que fia e tece: a fala é então sua luz e singra, íntima do vazio, à bordo da barca Nautikon. Sana me de formas turvas, Domine. Sana me da miséria tumular. Sana me do ríctus da amargura. Sana me do conturbado vendaval de Carrascozza. Sana me de não fazer ablução com água de estrela. Sana me de crótalos marinhos envenenados. Sana me de cadáveres dragados nos pauis. Sana me com os Santos Óleos e o azeite dos doentes. Sana me de fétidas palavras. Sana me. Sana me com a força da doçura. Sana me com a força da poesia. Sana me com a força da música. Sana me com a força das mulheres e das crianças. Que língua, ossos e olhos sejam para sempre. A constelação dentro de ti: água imersa em água. Buddah é o que acontece na pureza. Daqui há bilhões de anos, tua respiração um Buddah: será hoje! Buddah é o ar: não é um, nem um não. Mistura de ambos. Não é um: é concha, Órion, vento. Nem um não: Buddah é sim. Mistura de ambos: Buddah é, sim, concha, Órion, vento. Quanto mais próxima a língua da origem da chuva, menos fel e gramática. O acaso espreita da folha em branco. Toda sede do céu é de abismo e vivace sorvo, touro de mar caço à unha: oro a Orum, peço que a neve nô caia nas árvores vergadas pela névoa. O pensamento quer matar a sede na chuva. Quanto mais perto da música de câmara, mais a língua venta um acorde que amanhece esse virgem verso, esse rosário de buirás, esse kami na imensa altura do vento. Sonhar paraíso que enxágua retinas em moinhos-de-vento. No paraíso, esquecidos de tudo, jogamos búzios, modelamos o barro, adormecidos em camas de ilusão, acordados pelo assovio de um círculo branco. No paraíso, um dia, palavras de Shiva Nataraj, outro subimos a encosta pedrenta, saltamos da beira do abismo à solitude do jarro. Ontem somos mulheres, fritamos peixe, ou amanhã, homens, varremos a casa. Sábado, porque só há sábado no paraíso, crianças sopram o sol e o perfume do sol nos impregna com duas eternidades. Quando morremos, sim, porque há morte no paraíso, em cemitérios não nos acostumamos, fugimos pelas crinas de garças,escutando na barca Nautikon a respiração de Buddah, a çankha de Buddah. Sob o linho castiço da chuva, a treva horrível de nosso espírito vocifera claros nomes serenos. Atravesso o deserto com uma pedra no fundo do poço. Tanto azul de águas, mas a pedra, taciturna monja sem sol, nada espera, é só uma pedra envolta em antigo silêncio. Bem no fundo do mar de Abrolhos, esta pedra, seca por dentro. Tudo se pode falar: a transparência contínua, a praia com bicicletas. Eu rezarei a noa de um colar sem sombras, que te guardará da ilusão enorme. As relíquias de um domingo de ramos no copo d’água e nunca mais te verei embaixo da figueira. À sombra adriática do desejo eu busco – o vento que ergueu tua saia – a saia com que baixaste ao túmulo. A última flor do Lácio afina a língua no elixir primitivo que enovela a pedra sânscrita, pedra que os construtores desprezaram. Com ela posso segredar sargaço, grafismo, água à língua. Amigos, inimigos, não acordem as banhistas nuas na piscina. Elas nem sabem que o Arcanjo podia vir acordá-las com pizicatos de violoncelo. Tomara que nunca venha. Só assim as adormecidas continuam nuas. Avança um acorde de piano no esquecimento como dardo de luz brincando. Eu tenho motivos de sobra para ficar entre águas e conchas. Eu quero mar, ritmo, gôndola. Eu quero ar, clarabóia, agave. Tenho motivos que a luz desconhece. Só o escuro sabe adágios.


OBSERVANDO UM SINO EM OSAKA

Sino de pedra
e nenhum pássaro
no sino de pedra.

Trinta anos o sino no pórtico do templo.

Um monge lava o sino de pedra,
depois lava-se observando o sino,
depois dança em torno do sino

e faz de suas mãos
pássaros

que pousam no sino de pedra.

Sino de pedra
e alguns pássaros
no sino de pedra.
Gravura de Albrecht Dürer

Aqui, na cervejaria Bürgerbräukeller, entabulo conversa com o rinoceronte de Albrecht Dürer, que me traz logo uma cerveja e inicio a primeira leitura do Testamento para El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis – que sugere o total isolamento para que se possa desvelar o mais profundo do ser humano. O mesmo Nikos disse em algum lugar: – As únicas coisas que importam na vida: idéias, frutas, mulheres.

O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.

Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo. Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.

Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”


DOMINE

Miserere mei, Domine, quonian infirmus sum; sana me
Domine, quoniam conturbata sunt ossa mea.

Rei Davi


Sana me de formas turvas, Domine.
Sana me da miséria tumular.
Sana me do ríctus da amargura.
Sana me do conturbado vendaval de Carrascozza.
Sana me de não fazer ablução com água de estrela.
Sana me de crótalos marinhos envenenados.
Sana me de cadáveres dragados nos pauis.
Sana me com os Santos Óleos e o azeite dos doentes.
Sana me de fétidas palavras.
Sana me.
Sana me com a força da doçura.
Sana me com a força da poesia.
Sana me com a força da música.
Sana me com a força das mulheres e das crianças.

Que língua, ossos e olhos sejam para sempre.



ROSAS

Não aos naufrágios, não à morte
que tinge de nada nossos lençóis.
Sim aos sóis, e há tantos
e se aprofundam em nossas águas.

Não fui sonhado para a eternidade.
Disso eu sei e com certa amargura.
Fui sonhado para ser o sonhador
de certa matéria absurda e diamante.

Disso eu nada sei – de estar aqui.
E quase me iludo com esse chumaço
de rosas nas vértebras, rosas nunca criadas

por mim – a mais absurda
das carnes e que arde paraísa chama
e sonha em ser nunca a morte, mas as rosas.

Escutar Pasolini recitando

um poema a Ezra Pound



O CRISTAL SERENO E A SOMBRA

Sombra de pássaro no muro da Casa de Água.
Sombra de um cristal sereno que é,
no sonho antigo,
mais que pássaro, mais que sombra,

é assim nem que fosse a respiração
de um animal com olhos de abismo:
abismo então para todo lado,
abismo no sonho, no peixe, na sina,

abismo no assombro do pássaro
que, se pousa no telhado,
é anjo que não sabe a fala humana,

porque a fala é a luz da sombra
e cordas vocais de pássaro, claras,
se no sonho Deus se sonhar pássaro.


O ESCONDERIJO DOS FRADES BENEDITINOS

Não sei porque ando sob sicômoros.

A chuva que as folhas recolhem,
se embaixo delas sou eu que ando,
encharca de água meus cabelos.

Parece que, nos galhos dos sicômoros,
há uns frades beneditinos escondidos:
com as mãos muito brancas fazem a unção de águas bentas
nos cabelos que choram.
Um grafismo na parede também descansa.

SE EU MESMO FOSSE O INVERNO SOMBRIO
(A cisterna --- Opus 1)

Eu ouço a fonte dos tontos.
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele.
Manoel de Barros


Caí na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer
para escutar mel nas ostras,
para escutar a fonte dos tontos,
para escutar o sumo solar.
Aqui na cisterna tenho orgias de latim
e sou virgem de mulheres.
Meus olhos cobertos por vidros fumados,
de aros muito grossos e talvez prateados.
A cisterna mormacenta sufoca,
enquanto rememoro as cavilações
daquela noite de runas que vaticinou:
eu só poderia clarear o inverno sombrio

se eu mesmo fosse o inverno sombrio