
Certa mulher, mas não esta ou aquela,
porque me refiro à que vive na ilha do Arvoredo
– nas noites perigosas –
é música atravessando o muro
Aqui, na cervejaria Bürgerbräukeller, entabulo conversa com o rinoceronte de Albrecht Dürer, que me traz logo uma cerveja e inicio a primeira leitura do Testamento para El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis – que sugere o total isolamento para que se possa desvelar o mais profundo do ser humano. O mesmo Nikos disse em algum lugar: – As únicas coisas que importam na vida: idéias, frutas, mulheres.
O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.
Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo. Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.
Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”
SE EU MESMO FOSSE O INVERNO SOMBRIO
(A cisterna --- Opus 1)
Eu ouço a fonte dos tontos.
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele.
Manoel de Barros
Caí na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer
para escutar mel nas ostras,
para escutar a fonte dos tontos,
para escutar o sumo solar.
Aqui na cisterna tenho orgias de latim
e sou virgem de mulheres.
Meus olhos cobertos por vidros fumados,
de aros muito grossos e talvez prateados.
A cisterna mormacenta sufoca,
enquanto rememoro as cavilações
daquela noite de runas que vaticinou:
eu só poderia clarear o inverno sombrio
se eu mesmo fosse o inverno sombrio