domingo, 22 de fevereiro de 2009



Walter Benjamin (1892-1940).

Walter Benjamin, pela primeira vez sozinho no soturno casarão de seus antepassados, não pode abandonar a barcaça ao vento nem esconder esse corpo de mulher que furou à faca, nem urinar atrás da canoa, junto à âncora de ferro, nem se esconder do rumor da vida alheia, mas pode olhar a vida de frente e, ao se aproximar da vida, ela se transmuta em chuvas nas tábuas da varanda do soturno casarão onde, nesse exato momento, Walter Benjamin escreve suas Memórias de Leipzig.

Do outro lado da ilha de Pedra, bem próximo do filósofo alemão, eu moro numa pequena Casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade era viver numa Casa de vidro. Certa vez grafou no caderno: “Silêncio, quero passar onde ninguém passou, silêncio”.

O corcunda só se corrige na cova, não cansam de dizer os escolásticos. Eu, que moro numa pequena Casa de vidro, ouso vociferar: Ao inferno os pensadores de sistemas lógicos! Não só se pavoneiam de ter feito qualquer coisa, como também enlouquecem ao tentar explicar o vento, e se incluem na idiotia universal quando insinuam que o céu foi criado por eles.

Poderia citar, aqui, o culto Voltaire, que escreveu: “Os homens não conseguem fazer um verme, mas criam deuses às dúzias”. Claro que Voltaire pode nunca ter dito isso e eu, vil, atribuí a ele a frase pronunciada. Mas então eu seria mais arguto que Voltaire, posto que o dito é excelente.

Horas depois, ainda na pequena Casa de vidro, tive um pensamento selvagem: o de passar a língua na pele salgada das meninas virgens --- na pele da nuca, na clavícula, nos quadris assustados, na sombra espessa do púbis.

Eu sempre acreditei que eu próprio incitara Walter Benjamin a furar aquele corpo de mulher com a faca, para o fim de aniquilá-la mais rápido, e capturar o céu que aquele corpo esguio guardava num relicário qualquer entre as vértebras, se é que realmente algum dia houve céu, corpo de mulher, vértebras, mas a Casa de vidro existiu desde a primeira respiração.

No fim de uma semana, fui ao soturno casarão de Walter Benjamin. Percebi de imediato que ele não havia conseguido abandonar a barcaça ao vento nem esconder o corpo de mulher que furou à faca, mas ainda urinava atrás da canoa, junto à âncora de ferro, e o rumor da vida alheia ele o tinha sempre que lavava a xícara ou quando abria a geladeira em busca do alface.

Walter Benjamin não deu por minha presença. Eu retornei à Casa de vidro, esqueci um disco na vitrola, fiz café e escrevi até que a chuva lavasse os dejetos brancos das gaivotas no transparente telhado.

Joel-Peter Witkin, sem data

Volto ao ancoradouro de Vila da Pedra, meu caro Franz, para fumar apenas um cigarro. É que eu trabalhei a madrugada inteira nas minhas Confissões orgíacas e agora bateu um certo cansaço. O ar muito seco, muito azul, talvez me serene. Ontem fui à Tabacaria do Esteves, onde também se vende absinto, e avistei a divina Elisa, do outro lado da rua, com pluma branca no chapéu. La lengua del alma es la pluma, deixou escrito Cervantes. Eu só podia ver que ela entrava numa pensão sórdida. E olha que há vinte dias encontrei na minha caixa de Correio a notícia curta de que ela iria se casar. Com quem, meu amigo? Com o conhecido proprietário da Tabacaria, o Esteves, que ainda sorri. Então casou com o Esteves? Quis dizer a ele que sua esposa o estava traindo, mas decidi ficar quieto.

A divina Elisa acaba de sair da pensão sórdida, atravessa a rua em direção à Tabacaria, e, agora sei: ela é, nas horas vagas, prostituta. Unicamente por não poder, com minha costumeira honestidade, contar ao Esteves o que vi, preferi fingir que fumava um Continental e perguntei a ele como era estar casado. O Esteves me respondeu que Elisa é uma espanhola que conhecera em Málaga, numa Semana Santa. O ex-marido dela, pacato consumidor de queijo, sofria de um terrível mal: nasciam-lhe lesmas na língua; lesmas não confiáveis. Ora uma das lesmas caiu no chá de Elisa e isso foi o suficiente para que as núpcias fossem desfeitas. Ela amara o ex-marido na cama de linho, atrás da igreja dos Lavados, o amara à beira do rio, no banheiro da estação de trem, e só por causa das lesmas decidiu vir para cá, à Vila da Pedra, e nos conhecemos ali no ancoradouro onde agora, em estado de óbvia distração, eu contemplo as nuvens.

Compreendo o romance e o motivo, só não entendo porque Elisa trái o Esteves nessa pensão barata. Depois de jogar o charuto no cinzeiro, aquela imagem dela entrando naquele lugar imundo ainda apertava na minha cabeça. Vociferei:

– Mas por quê? Por quê?

– Talvez por tédio –, arrisco um palpite.

Recordemos: durante anos Elisa amou enlevadamente aquele homem das lesmas na língua e, há vinte dias, casou com o Esteves. Amou aquele homem porque seus grossos bigodes eram negros, e ama hoje o proprietário da Tabacaria porque ele é ocioso, amável e não possuí lesmas na língua.