segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Mara Friedman


QUANTO MAIS PRÓXIMA A LÍNGUA
DA ORIGEM DA CHUVA,
MENOS FEL E GRAMÁTICA

O acaso espreita da folha em branco.
Toda sede do céu é de abismo
e vivace sorvo, touro de mar caço à unha:
oro a Orum, peço que a neve nô
caia
nas árvores vergadas pela névoa.
O pensamento quer matar
a sede na chuva.
Quanto mais perto da música de câmara,
mais a língua venta um acorde que amanhece
esse virgem verso,
esse rosário de buirás,
esse kami
na imensa altura do vento.
O zen nasceu de um silêncio do Buddha
AOS QUATRO VENTOS

Quando abro os olhos – estou vivo!
Quando os fecho – sou espírito!

Se respiro aos quatro ventos,
sou barco na corrente.

Se fecho os olhos,
posso ser qualquer coisa:

mandarim, pérola, enseada,
peixe, solidão, criança.
Antes que a primeira carpa se molhasse,
a carpa já estava molhada.
Buddha
OS OLHOS DO ADORMECIDO

Esfinge ao sol, enquanto durmo.
Se eu acordasse agora, então o quê?
Um olho aberto, outro fechado,
a esfinge sonha com meus olhos.

Meus olhos nessa luminância
dos olhos da esfinge de cal.
Meus olhos são alísios, alívios
nos olhos da esfinge no pátio.

Esfinge apagando altas estrelas,
que depois meus olhos reacendem.
E por que esfinge, por que olhos?

Seria mais simples não haver vida
– nenhuma palavra –
seria mais simples não morrer.


Paganini comia pêras antes de dormir
Escutar Paganini

http://youtube.com/watch?v=98y0Q7nLGWk
Man Ray
PRIMEIRO PASSO PARA ENTENDER AS COISAS

As coisas, quando as olhamos,
não são mais externas,

já estão em nós, são nós mesmos,
voltam a ser externas com nossas palavras,

voltam transformadas em coisas mortais.
As coisas, quando as olhamos,

não são mais externas,
um violoncelo na Casa de Água, por exemplo,

quando escutamos, quatro cordas que se ferem
com um arco, quatro cordas não mais externas

mas nós mesmos
Pérola de Cleópatra
A PÁGINA 161

Li num pergaminho de astrofísica antiga
que à página 161 de qualquer livro há um grego que
súbito
vira para trás
e
nos
coloca
na palma da mão
uma
pérola
de
ouro
Matisse
ESTA É A CONFIANÇA QUE TEMOS EM DEUS:
SE LHE PEDIMOS ALGUMA COISA
SEGUNDO A SUA VONTADE,
ELE NOS OUVE.
(1 João 5, 14)

Pés de ouro equilibram-se em peixes.
Inciput erat verbum: no princípio era a palavra.
A palavra é clarabóia
sobre o pensamento escuro.

Jesus cita as antigas escrituras
para sugerir que somos deuses.
Na fonte fria lavar cabelos,
lavar cabelos na fonte fria.

Pés de pluma equilibram-se em águas.
Tenho confiança em Deus
e a Ele peço três coisas segundo a Sua vontade:

--- a força da criança
--- a força da poesia
--- a força da música
Árvore na neve
CONSOADA

Entre as constelações e o chão,
depois de uma pequena refeição noturna,
percebo que

isso é uma árvore alta entre outras árvores
isso é uma noite com tambores de couro de antílope
isso é uma fogueira em Pequim
isso é uma bicicleta e o vento
isso é uma pétala do roseiral de Xiraz
isso é a precisão do arqueiro Kenzo Awa
isso é um pórtico partido sobre o mar
isso é um cais abandonado
isso é dar-es-salaam, que significa: a saída é difícil
isso é o anel que o príncipe assírio jogou na andorinha
isso é um scherzo de Paganini
isso é um desenho de criança
isso é Miró me beijando na boca um sol
isso é um sonho com veleiros
isso é uma janela aberta sobre um campo de águas
isso é selvagem
isso é um areal moreno
mas apenas um sonho tudo isso
Só as nuvens são eternas.
Mário Quintana

Johann Sebastian Bach


A MÚSICA DE BACH

Romper a cabaça com pedra de violoncelo.
Verter o líquido de copioso cristal
no deserto a queimar a alma.
Pedra com que Bach fez ablução no século 17.

Bach lançou a pedra na cabaça
e viu o líquido escorrer pela alma
até extinguir-se a dor
– a que nos devora sem piedade.

O que é noite suave e afunda
no líquido que verte da cabaça esburacada.
O líquido não anula o fogo, antes cria liames,

Pois a função da música,
segundo a Lei da Harmonia das Esferas, é unir água e fogo,
conferir levezas distraídas ao deserto.