terça-feira, 1 de abril de 2008

Chema Madoz


A SOMBRA

A respiração na eternidade é assim:
se a serpente de sombra azul respira,
respiramos.

Se ela pára de respirar,
morremos.

A serpente de sombra azul
passeia sem bússola pelo paraíso.

Deus a criva com setas de canitar.

A serpente morre,
morremos.

Deus nos ressuscita no terceiro dia,
sem a serpente,
só com a sombra azul.
7 paisagens oníricas de Maggie Taylor







Miran


Sem palavras


Edward Yanowitz


Sonhei que fazia amor com um automóvel branco, um Citroen DS. Dois homens conduziam esse carro, desafiando-me a ficar em cima da carrosserie, muito lisa e escorregadia, enquanto guiavam o carro a grande velocidade. Consegui manter-me e à medida que ia ganhando mais confiança comecei voando ao longo do carro, depois ao lado e por fim aterrando no escorregadio capot, sentindo a mais exaltante sensação de liberdade, de elegância, de destreza. O carro continuava seguindo a alta velocidade. Eu voava a seu lado, braços e pernas estendidos, dando saltos como bailarina. Vestia roupas curtas, transparentes, fluentes sobre o corpo nu. Voava e ria com a mais pura alegria, tocando por vezes no carro, até que por fim me achei de pé no guarda-lamas traseiro. Com os braços e as pernas agarrados ao carro, lentamente senti o meu corpo cobrir-se duma espécie de inúmeras bocas que se colavam à carrosserie como ventosas de polvo, mas com a forma de bocas humanas. E eram muitas, muitas, muitas. Com a velocidade incrível sentia o êxtase.


Fragmento do livro Anacrusa, de Ana Hatherly

Laszlo Layton


o paraíso
no sonho
te esquece entre águas e conchas
Chego ao casarão e uma chuva noturna, com a lira destemperada, lava tudo, desde a carniça do sovaco da cárie que trago na alma até às plantas ressequidas a chuva repentina lava. Ia entrar, mas prefiro fechar os olhos e relembrar aquela história que me contou um velho marujo no bar Gallo del Viento. Dizia-me ele que, em sua casa à beira do ancoradouro, havia uma ave-do-paraíso morta em cima da geladeira Cônsul. Ave-do-paraíso que morreu, depois que provou carne de cavalo estragada. Cavalo que morreu de tanto carregar baldes de água para apagar o fogo que se alastrava pela casa. Fogo causado pela queda dos longos círios nas cortinas de linho branco. Círios postados ali para o velório, enquanto as labaredas iam e vinham lambendo os móveis, os tapetes. Velório? É, velório de sua mulher, que estava na sala de jantar, quando ele entrou desesperado em casa e a matou, pensando que ela fosse um gatuno, com certeiro pontaço de faca na altura do coração. Claro que não ri da história do marujo. Me benzi com peixe e talos de arruda, parti águas de oceano para deslocar abismos, caí em cisternas e escutei Rimski-Korsakoff num disco de vinil usado e se eu cerrasse os olhos agora e escutasse com atenção o séptuor que a senhora do gelo desfia na varanda? O séptuor que diz assim:

HOSOMI

Piscar do espírito:
o paraíso
no sonho
te esquece entre águas e conchas
e, súdito,
ao acordar
te respira

Julie Blackmon


Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe. O espelho refletia sua caveira.
O ESPELHO DE VENTO-E-LUA

Em um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas noites.

Uma tarde, um mendigo taoísta pedia esmolas na rua e proclamava que podia curar as doenças da alma. Kia Yui mandou chamá-lo. Disse-lhe o mendigo: “Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o curará se seguir minhas indicações”. Tirou da manga um espelho polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho de Vento-e-Lua. Acrescentou o mendigo: “Este espelho vem do Palácio da Fada do Terrível Despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o espelho e para felicitá-lo por suas melhoras”. Não quis aceitar as moedas que lhe foram oferecidas.

Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe. O espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente vestida, lhe fazia sinais. Kia Yui sentiu-se arrebatado, atravessou o metal e realizou o ato de amor. Fênix acompanhou-o até a saída. Quando Kia Yui acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yui não resistiu à tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o prenderam quando saía e o acorrentaram. “Eu os seguirei”, murmurou, “mas deixem-me levar o espelho”. Foram suas últimas palavras. Encontraram-no morto, sobre o lençol manchado.



Tsao Hsue-King, Sonho do aposento vermelho. Relato incluído no Livro dos Sonhos de Jorge Luis Borges.

Dae-Woong Nam


Casa de Agoa do Chafariz
CASA DA AGOA DO CHAFARIZ

Caída no lajedo da Casa da Agoa do Chafariz, a velha pronuncia a palavra: Qadós. Um aguar de onda marinha umedece o rosto de Hilda Hilst em decúbito dorsal rente à árvore. Envolta em eflúvios de água de colônia, ela agoniza e não há cítara nem pedra que a ressuscite. Com arraia tatuada em suas costas, com um olho tatuado acima de seu púbis, Hilda espanca com chapéu de chuva uma das janelas da Casa da Agoa do chafariz. Hilda Hilst traz hua cabeleira de limos, chêa de caracois, de michilhoens, ou caramujos e, ao peito, a música e um talim de pelles de enguias. Ainda é tão cedo que Hilda Hilst descerra a cortina de cristal e contempla o vento nas ramas. No altar, as lágrimas da deusa Orín são abandonos da chuva num dos degraus de mármore. Ou a deusa borda lágrimas na tempestade porque não voltarás? O marasmo dessa noite, através das cortinas de contas de cristal, olha para a ode que grafito sobre o dorso do peixe persa.