
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Tem medo da morte?
Não, até agora não. Isso é uma coisa que nunca sabemos. Não vale a pena dizermos, quando estamos com saúde, «Não tenho medo da morte» e depois, quando sentimos que a situação é grave, podemos realmente ter. Antes do último instante a pessoa não sabe se vai efectivamente ter medo da morte ou não.
E do esquecimento?
Não vale a pena ter medo do esquecimento porque tudo esquecerá. Nada é imortal, nem pessoas nem obras.
Aterroriza-o escrever um livro mau?
Não. Talvez eu esteja enganado, mas creio que até agora nunca escrevi um livro mau. E se amanhã isso acontecer, das duas uma: ou eu chego ao fim do livro e reconheço que é mau e não o publico, ou então se eu não reconheço que ele é mau mas é mau, espero que alguém – a minha mulher, um amigo – me diga: «Aconselho-te a que não o publiques porque isto já não é o que tu fizeste antes, já está muito abaixo». E eu espero nessa altura ter suficiente senso para estar de acordo.
Quem será José Saramago daqui a 50 ou 100 anos?
O autor? Não sei. Quando há pouco disse que todos vamos em direcção ao esquecimento pode-me acontecer, como acontece tantas vezes, que ainda haja leitores que me leiam. Mas vamos pensar em 1000 anos: é duvidoso que ao fim de 1000 anos ainda haja pessoas interessadas em ler o José Saramago.
Considera-se um patriota?
Eu acho que é um sentimento que não vale a pena. O patriotismo presta-se a muita retórica e a muita confusão. Porque as pessoas podem dizer todas que são patriotas e terem por detrás motivos não só diferentes como opostos. Eu não quero nenhum mal ao meu país, pelo contrário quero todo o bem que seja possível. Se isto é ser patriota, eu sou patriota. Mas também posso ter momentos de indignação e de desânimo, quando vejo que o país não está a ser governado como devia. Agora não me pergunte como é que deveria ser. Mas quando eu vejo que estamos numa crise social e económica tremenda e ainda mais numa crise de mentalidade – uma espécie de apatia, uma espécie de indiferença – isso dói-me. Os países começam, crescem e acabam. Um dia acabará este. Vivamos o tempo em que estamos. Há pouco tempo, no Fórum Social de Porto Alegre, eu disse: «Se eu pudesse eliminaria dos dicionários e da consciência das pessoas o conceito de utopia». Porque o conceito de utopia fez mais mal do que bem. A gente põe a utopia num sítio qualquer longínquo, não se sabe onde, depois fala da utopia… A única utopia razoável que podemos falar é o dia de amanhã. O que fizermos hoje tem repercussões no dia de amanhã e essa é a única utopia.
Para que serve um romance?
Para muitas coisas. Em primeiro lugar, porque toda a gente desde sempre gostou de contar histórias e gostou de ouvi-las, e, enfim, um romance é uma história. E depois se serve para alguma coisa mais, isso logo se vê...
A palavra: a menor aparência de materialidade. A palavra: matéria fina de toda certeza. O arqueiro quântico se torna um claro espelho do alvo. O arqueiro quântico fixa a mente na menor aparência de materialidade: mesmo no escuro e com os olhos vendados, o arqueiro quântico não erra a imensa curva do vento.
Do livro O caqui e o angorá, de Fernando José Karl.
Experimentos científicos nos mostram que se conectarmos o cérebro de uma pessoa a computadores e scanners e pedirmos para ela olhar determinado objeto, podemos ver que certas partes do cérebro estão sendo ativadas. Se pedirmos para esta pessoa fechar os olhos e imaginar o mesmo objeto, as mesmas áreas neurais do cérebro se ativarão, como se estivessem vendo os objetos. Então os cientistas se perguntam: quem vê os objetos, o cérebro ou os olhos? O que é a realidade? É o que vemos com nosso cérebro? Ou é o que vemos com nossos olhos?
Quando o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar, Eugen Herrigel, seu aluno europeu, não pôde deixar de dizer:
– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.
O mestre pousou nele um olhar prolongado, antes de marcar um encontro para a tarde desse mesmo dia.
Já era noite quando Herrigel foi introduzido no dojo. O mestre Awa convidou-o primeiro para um Cha no yu, uma Cerimônia do chá que ele próprio realizou. Sem proferir uma palavra, o ancião preparou o chá com todo o cuidado e, depois, o serviu com uma incomparável delicadeza. Cada um de seus gestos se desdobrava com a precisão e a elegância que só uma grande concentração pode dar. Os dois homens mantiveram-se em silêncio para poderem saborear convenientemente este harmonioso ritual. Um instante de eternidade, como dizem os Japoneses.
Seguido pelo seu hóspede, o mestre atravessou depois o dojo e foi colocar-se à frente do átrio que resguardava os alvos, colocados a 60 metros de distância. O átrio encontrava-se mergulhado na penumbra e dos alvos apenas se conseguia descortinar os contornos. Obedecendo às instruções do mestre, Herrigel foi lá colocar um alvo, deixando, no entanto, as luzes apagadas.
Na volta, reparou que o velho arqueiro se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou. O arco retesou-se lentamente, até que a flecha partiu bruscamente, mergulhando na escuridão. O mestre permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.
Cheio de pressa e curiosidade, Herrigel foi acender as luzes para ver onde se tinham cravado as duas flechas. A primeira encontrava-se no centro do alvo; a segunda arrancara – dessa primeira flecha – vários centímetros de bambu.
Herrigel foi buscar o alvo e felicitou o mestre pela façanha conseguida. Mas este retorquiu:
– O mérito não me pertence. Isto acontece porque deixei agir em mim Algo qualquer. E foi este Algo qualquer que permitiu às flechas se servirem do arco para se juntarem – fincadas – no alvo.
Retirado do livro A arte cavalheiresca do tiro com arco,
de Eugen Herrigel.