terça-feira, 29 de setembro de 2009

Anônimo, 1913

Vi o silêncio, quis guardar no espelho. A eternidade quebrou o espelho, não o silêncio. Este durava no vento luminoso da noite, na concha azulada. Retido no espelho, o silêncio e o miosótis. Vaso de porcelana à nossa porta, música alada à branca superfície da luz que do vaso emana. Porcelana é luz material que vem à tona e adquire a serenidade de um piano de Chopin na noite que mistura o azinhavre de nossa fala, sagrada por circunstância, à pureza salina de uma estrela que, vista de perfil, é toda a nossa infância. Romper a cabaça com pedra de violoncelo. Verter o líquido de copioso cristal no deserto a queimar a alma. Pedra com que Bach fez ablução no século 17. Bach lançou a pedra na cabaça e viu o líquido escorrer pela alma até extinguir-se a dor – a que nos devora sem piedade. E o sonho, astúcia da vigília, é noite suave e afunda no líquido que verte da cabaça esburacada. O líquido não anula o fogo, antes cria liames, pois a função da música, segundo a Lei da Harmonia das Esferas, é unir água e fogo, e conferir levezas distraídas ao deserto. Dá para o quintal de vento e de monturos a respiração de Deus, mais conhecido como “o mais frágil de todos”. Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem. – Confundiram tudo – diz Deus, e do rio de seu coração entre neblinas fogem acordes de violas à beira do abismo, onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música. Deus iça a pandorga e o fio que a iça está encordoado de arco-íris sob a chuva. O vento no quintal é a ressurreição. Deus, quando vem o vento, ilumina-se com as partículas cristalinas que o sol espalha no coração da bolha de sabão – coração de Deus. Meu único triunfo é a concisão. Consistência do jardim de miosótis. Imerso no vento o capinzal ondula contra o azul noturno da escarpa. A leveza do vento espreita Sirius. Olhos: pérolas duras em poços escuros. O silêncio minimalista da pérola. A lonjura que há no que é azulado. À sombra o diamante te aguarda, sofrido de quantas senhas esqueceste. O que é verdade? Escutar maré de estrelas, desistir da farsa, vocábulos, pavores e, nas noites, soprar o carvão, sabendo que nele o escuro é musical.

John Paul Caponigro, sem data

Só o impossível partilha hálito celeste.

Astrid Cabral

O primeiro nascimento é orvalho.
O segundo nascimento é a palavra orvalho.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Escutar Drummond

na voz de Drummond

http://www.youtube.com/watch?v=CaexXJ6UFnw&feature=related

Odilon Redon (1840-1916)

LES BAINS DE CARACALLA

Sonhei tanto, sonhei tanto,
que não sou mais daqui.

León-Paul Fargue



Às águas da piscina de Caracalla levo a alma,
– na piscina nadam cinco Danaides –,
levo a sede às cacimbas.
Com pureza entro na barca do pensamento;

agora sei que as Danaides
é que arejam a língua da piscina.
Há dentro de mim uma água que não existe.
Há uma fonte além do vento e da morte:

nela água é humilde.
A cisterna que a contém recende
a um acorde de pólen.

A música é haste de gramínea
entre os cabelos das Danaides.
Esqueci minha língua de piscina

no tímpano de uma delas – a com o leque.