segunda-feira, 22 de julho de 2013

June Sira


Durante essa chuva de verão, que destelha o casarão rente ao bosque de eucaliptos, Belacqua lê num tomo de Falstaff que fingir de morto para conservar a vida não é fingir a imagem da vida, senão representá-la com verdade e perfeição.
Morrer é que é fingimento, porque quem morre não tem vida de homem, e, porque está morto, o homem não consegue mais escutar o rumor das palavras nem fisgar no anzol um martim-pescador, e, porque está morto, o homem não faz mais o sinal da cruz com água benta na igreja dos Lavados nem come frutas de carandá nos cachos, e, porque está morto, no rosto do homem não vem dormir a noite nem a música lava seus pés, e, porque está morto, a língua que o homem traz dentro da boca não diz mais os vocábulos tango, grimório, cristal, lavanda, besouro, azeite de Oliva, fonte, Clementina de Jesus, e, porque está morto, o homem não pode mais tomar banho de chuveiro, e, porque não respira, esse homem, a rigor, não passa de fingimento de homem.
Porque Belacqua está vivo e deitado na rede da varanda, o bosque de eucaliptos e o mar não podem ser tocados pelo fingimento; ainda que ao sabor do acaso, Belacqua está de fato vivo e não tem dúvidas: a palavra que pronuncia com a língua de sua boca é a mesma palavra que pode ser lida no seu caderno de apontamentos.
Belacqua, nas horas vagas, é virtuose na arte de se fingir de morto. Algumas vezes, quando está fingindo que morreu, ele é acometido de um torpor incontrolável que o afunda no sono.
O sono é a morada do sonho.
Se, no sonho, Belacqua vê uma árvore, pode voar sobre ela na garupa de um leão ou pode transmutar o leão em chuva e ficar dançando na chuva durante horas ou pode ser o piloto do Graf Zeppelin lá em cima na luz ou pode escutar a música que as pedras exalam ou pode ler no muro branco que a sensatez é que aumenta o absurdo.
No sonho de Belacqua, sonho que é uma astúcia da vigília, chegam aromas de amanhã, e isso é tão inexplicável quanto o aparecimento do gênio quando Alladin esfrega a lâmpada.
Belacqua sabe: somente a palavra que repousa na quietude de um sono profundo consegue ser suave e simples. Belacqua aprendeu: escrever é um sono mais profundo que a morte, porque neste sono mais profundo que a morte não somos sequer um rosto que se dissolve como um sonho, porque neste sono mais profundo que a morte o único que podemos ser é o velho gozo elementar da chuva chuva que, como os cavalos, também se cansam – chuva que conduz ao branco muro da solidão: http://www.youtube.com/watch?v=fz4MzJTeL0c


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Pavane, Opus 50
de Gabriel Fauré