Nasci em Joinville/SC no ano de 1961. Sou autor, entre outros livros, de "Casa de água" (Poesia), "O livro perdido de Baroque Marina" (Romance) e "Senhora do gelo" (Novela).
Penduro a chinesa de cabeça para baixo depois que a torci, dela vazou água penduro a chinesa de cabeça para baixo eu mordo conchas tão finas a chinesa, de cabeça para baixo, morde conchas comigo a brisa esvoaça a frágil chinesa que não entontece mesmo de cabeça para baixo eu nem diria que ela respira eu nem diria que ela é morta a toalha secando ao vento estival: a efígie da chinesa na toalha de banho
Essa matéria fina de toda a certeza– música do pensamento – é a palavra, e com ela pronunciamos o indizível de sermos céu, pêssego, caligrafia.
Com essa fina matéria de toda certeza toco a fímbria do ar, me despedaço sete vezes, sou menos que o vento, oração numa varanda, sou o que eu desejo.
E o meu desejo, se o pronuncio com essa matéria fina de toda a certeza – a palavra – o meu desejo é que acordemos num quarto novo, alguns cacos pelo tapete, uma estrela fervente em cada mão.
Greta Garbo na chuva
Eu, sentado na poltrona de uma sala vazia, observo que a luz se foi ao sabor do vento. Um grande silêncio e as persianas. Escurece; recordo que no dia que passou houve alegrias numerosas: terraços, vime, rangidos, sonolência vivificante e, creiam, houve até Greta Garbo na chuva.
Como esquecer essa tarde em que a observo, sob aquelas árvores esguias, inteiramente molhada de chuva – ela, Greta Garbo – os cabelos escorridos sobre os lábios, a saia colada às coxas.
Se ali o céu, acúmulo de ar, ourografia nebulosa, água corrente o céu --- via régia --- linguaviagem em direção ao sabre lúcido, à prosa da piscina vista do belvedere.
Ouçamos, pois, como soa o céu: sem anular o sonho, antes o vivifica. Se o céu parece comum, é porque não o vimos ainda.
Despojar a palavra da palavra, confessá-la em música. O céu passou, mas o rastro do céu,
fixo nesta matéria fina de toda certeza --- a palavra --- permanece ao alcance do sopro
Vasos de barro, onde cisne e música somem. Se olham --- cisne, vasos de barro, música --- imersos na voz, aderidos ao corpo que logo finda neles --- os dourados,
com música transbordando de vasos de barro moldados pelo sopro do cisne que os dias desdouram, como se a mais alta sina fosse perder vasos de barro, música, voz.
Os dourados somos todos, esquecidos do corpo que, antes das constelações, silenciava uma prímula, um grão
de lua na altura do peito, na altura do peito dois vasos, não de barro, de seda fina do arrozal, dois pulmões, dois cisnes:
vasos de música
O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo na solidão.
O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos?
Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar. O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida. A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.