quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
A respiração na eternidade é assim:
se a serpente de sombra azul respira,
respiramos.
Se ela pára de respirar,
morremos.
A serpente de sombra azul
passeia sem bússola pelo paraíso.
Deus a criva com setas de canitar.
A serpente morre,
morremos.
Deus nos ressuscita no terceiro dia,
sem a serpente,
só com a sombra azul.
O inconsciente deriva do que é puramente lógico, ou em outros termos, do significante.
Nos curamos ao ouvir, no significante, pulsão de vida.
Segundo Saussurre, "o significante é uma realidade psíquica construída por uma imagem acústica".
Exemplo 1: xícara.
Exemplo 2: búfalo.
Exemplo 3: faca.
Palavras tais como: amor, pensamento, alma, alegria, paz não podem ser significantes, posto que não formam imagem acústica.
O significante não é a palavra que se pronuncia ao enunciá-la. Não adianta, portanto, recitar xícara, búfalo, faca.
O significante não é o som da palavra, mas uma imagem acústica que não precisa da voz.
O significante habita o silêncio.
Xícara forma a imagem da xícara e tem um som peculiar
ou acústico: x-í-c-a-r-a.
Búfalo forma a imagem do búfalo e tem um som peculiar
ou acústico: b-ú-f-a-l-o.
Faca forma a imagem da faca e tem um som peculiar
ou acústico: f-a-c-a.
O significante habita o silêncio.
O significante é o inconsciente (ou Deus ou amor ou o fluido integrativo ou o sim) em ação.
No inconsciente só há sim. Não há não no inconsciente.
O inconsciente é sim primordial, fluido integrativo, afirmação: nele não há não.
A não ser que eu deva dizer não ao cansaço, à preguiça, à mentira.
Para finalizar: a via régia, real, para o inconsciente é, para usar uma expressão de Augusto de Campos, uma “linguaviagem”, sempre em direção a outro tempo e a outro lugar, uma micro-língua em vero exercício que não se confunde com as línguas genéricas, coletivas ou convencionais, as quais alimenta e vivifica; ainda que se pareça à língua comum, comunicativa, transgride seus usos, evita suas sintaxes, afeta sua morfologia e redistribui seus valores semânticos.
Este artigo faz parte de um livro que o dono deste blog Nautikkon --- Fernando José Karl --- está escrevendo sobre "A essência da linguagem". O título do livro é "O arqueiro quântico".
O venerável convida a menina para que sente em seu colo.
Quinze anos tem Laurinha; o venerável espera que saiam todos e a mão com o grosso anel de ouro enfia-se no musgo entre as coxas da menina que ainda não sabe, que ainda não pode saber.
Os lábios molhados da menina, a nuca perfumada, o repique dos sinos. Alguns padres desfiam o rosário no átrio.
Aqui é o balneário de Ó envolto em neblina, onde atracam as barcas que descem o rio. Folhas do tamarindo caem, num abandono previsível, e, se erguermos um pouco os olhos, deparamos também com aquele céo antiqüíssimo e monótono. Contudo, o que se percebe mesmo é que o vento e os homens, as pedras e as mulheres só cuidam de si, nunca desconfiam que, nesse minuto, na abadia de Wassal, o venerável Hans força a menina a ficar de de quatro e a beijar o crucifixo.
UM POEMA,
de Safo
Contemplo como o igual dos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura,
e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai
a minha voz,
a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,
e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça.
Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos
ELEGIA: INDO PARA O LEITO,
de John Donne
Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo)sem vestes.
As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.
Tradução: Augusto de Campos.