quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Shânkara Lis Martins Karl, minha filha



CARTA À MINHA FILHA

Adorei tua carta, Shân.

Breve comentarei, em minúcias,
tudo o que escreveste nela.

O que posso te dizer, agora, é o seguinte:
eu e o Algo (ou o Deus) somos um;
tu e o Algo (ou o Deus) são um.

Nossa origem é celeste: nossa origem é muito profunda.

Quando se fala do Algo, está se falando do quê?

Perceba que, em vez da costumeira palavra Deus, a palavra que se está usando agora é Algo, que é a mesma coisa que dizer x ou mistério. Quando se diz Algo está se afirmando a liberdade, sim, o livre-arbítrio de termos consciência de que somos muito mais que pó.

Se quisermos achar que somos apenas pó, nada mais, é o que seremos: isto é livre-arbítrio: nós escolhemos se vamos ser babacas ou elegantes: nós construímos e despertamos nosso mundo interior, ali onde reinamos soberanos.

O filósofo alemão Nietszche disse: "Deus não nos quer como ovelhas, mas como co-criadores".

O Algo não é ação, mas sublime ação: ação que vem daquilo que é o mais alto em nós: e o que é o mais alto em nós move o Sol e as outras estrelas: o Algo é o amor (outra palavra um pouco gasta): por tudo e por todos: principalmente pelos mais humildes, pobres, fracos.

Quando se diz Algo, está se dizendo, simplesmente, que somos tudo o que nos cerca: somos a luz e a treva; o tigre e a lama; o podre e o vivo; a pedra e a flor; o vento e a chama; o mar e o peixe; a música e o nada; o medo e a força: o Algo em nós é tudo. Mas precisamos, sim, do livre-arbítrio para escolher se vamos ser o podre ou o vivo; a morte ou a vida; o egoísmo ou o amor. A escolha é nossa, Shân, porque o Algo não é palavra nem imagem, mas vida verdadeira, vida em estado puro: música em estado puro.

A palavra Algo nada quer dizer, mas o que o Algo é mesmo, isto faz toda a diferença.

O Algo é cada detalhe do mundo exterior, só que dentro de ti. E é dentro de ti, Shân, que pulsa teu mundo, com chuvas e músicas, delícias e funduras, mel e sono, tempestade e amor.

Devemos serenamente fechar os olhos e escutar a voz do silêncio que há em nós: esta voz é o nosso diamante sonoro.

Se estás infeliz, fecha os olhos e viaje por teu mundo interno, pois ali és uma deusa e és inteiramente livre, sim!

Se não despertamos pra nossa liberdade interior, não somos felizes; e não somos felizes se não reverenciamos o Deus que há em nós. E pode ser que o Deus (ou Algo) em nós seja a coisa mais simples deste mundo. E o que é a coisa mais simples deste mundo, então?

Namastê: o Deus que há em mim reverencia o Deus que há ti, Shân.

Um beijo, com amor

Fernando

Um grafismo de Fernando José Karl


Escutar Mass in B minor “Agnus Dei”

http://br.youtube.com/watch?v=tdLCcQixNvg

Intérprete: Andreas Scholl.

Clare Strand, sem data



K. escreve uma carta ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto (.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”. A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios. A palavra neve: sônica, nívea.

William Mortensen, 1932



CURIOSIDADES



Se você ficar gritando por 8 anos, 7 meses e cinco dias, terá produzido energia sonora suficiente para aquecer uma xícara de café.

O coração humano produz pressão suficiente para jorrar o sangue para fora do corpo a uma distância de 10 metros.

O orgasmo de um porco dura 30 minutos.

Uma barata pode sobreviver 9 dias sem sua cabeça até morrer de fome.

Bater a sua cabeça contra a parede continuamente gasta em média 150 calorias por hora.

O louva-deus macho não pode copular enquanto a sua cabeça estiver conectada ao corpo. A fêmea inicia o ato sexual arrancando-lhe a cabeça.

A pulga pode pular até 350 vezes o comprimento do próprio corpo. É como se um homem pulasse a distância de um campo de futebol.

O bagre tem mais de 27 000 papilas gustativas.

Alguns leões se acasalam até 50 vezes em um dia.

As borboletas sentem o gosto com os pés.

O músculo mais forte do corpo é a língua.

Elefantes são os únicos animais que não conseguem pular.

A urina dos gatos brilha quando exposta à luz negra.

O olho de um avestruz é maior do que o seu cérebro.

Estrelas-do-mar não têm cérebros.

Ursos polares são canhotos.

Seres humanos e golfinhos são as únicas espécies que fazem sexo por prazer.

Flor Garduño, sem data




LUCTANTES VENTOS TEMPESTATES
QUE SONORAS


No mais mineral das profundas prosas altas,
onde a viola de chuva se esconde,
lá onde as piscinas ondulam tempestuosas,
quando o escarcéu das águas se avulta,
lá a voz selvagem e as iguanas sedentas,
lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista
e a obsedante garoa rega a pedra da elegia.
No alto-mar de transparente massa cristalina,
quanto mais ao alto-mar de silêncio perto,
mais a voz vai aclarando,
se antiga é a alma que se vislumbra,
assim das profundas mostra claro e radiante
o mineral das prosas altas
que serena o que, nas sedentas, há de árido.


Henry Fox Talbot, 1839



Vim a este Hotel Sunset Boulevard, rente ao mar grosso de sal e azul, porque me contaram que aqui estavam me esperando Schopenhauer e Francisca B. Não os encontrei. Não faz mal. Ficarei espiando o mar tranqüilo assim e o visível corpo n’água.

Mar em que nos abandonamos e que cresce em nós com as tormentas, continuará a ser água salgada em desalinho constante e os limites deste mar, fixados em alguma idéia, se confundem com a altura do céu que é claro sem nunca ter pensado: este céu é suficientemente despovoado de anjos e beatas virgens, de tal modo que resta sempre novo céu que podemos exaurir e dele arrancarmos as finas cordas da chuva, as chuvas de que é capaz o espírito.

E acontece que, para o espírito, as nossas presentes chuvas, sem consideração moral, são mais molhadas. Aquele que construiu em si a obrigação de molhar os dedos na pia de água benta, sabe que nunca deixará de faltar matéria e realidade à água benta e só terá necessidade de recorrer a ela se, vazio, e para iludir o escuro em si mesmo, tocar a suposta santidade da água que, ali na pia, é água apenas, e isso é tudo para essa água que, sem pia nem beatitude, continua ali e logo evapora. Mas chega de filosofia.

Não vou esperar mais. Daqui posso ver a Tabacaria. Talvez o Esteves saiba onde Schopenhauer — o peixe espinho — e Francisca B. estejam.

Duas Anas fotografadas por Helô Espada

Um grafismo de Fernando José Karl


Embora eu saiba que os mortos não se levantam, essa pintura acima, a lápis de oil pastel, é uma tentativa humana demasiada humana de ressuscitar minha vó Ana Castro de Jesus Leão Beeck (1911-2009).