segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Robert Demachy, 1900


Lucana me convida para eu encharcar de viço os duros ossos e, agora, imerso em água de Ofurô, folheio a virgem ode desse líqüido morno, folheio a voragem de sumir que esse líqüido ondula e acaricio a pele de Lucana. Água de Ofurô, de crescer envelheceu, quer derramar-se molhada, beirando não sei o quê: quando chora, é o ressentimento que essa água lava, água de gosto amargo, encontrada na casca da quássia. Costura Lucana uma tempestade no fino pano da sombrinha. Lucana quer verter-se molhada – recolhida à sombra – no jardim suspenso que é um silêncio atirado ao ar de um céu, um silêncio de peixe que desliza no limo da gruta; peixe que cospe leite de ouro no púbis da mulher chuvosa que, deusa-dos-pomares, se transparenta.

Anne Arden Mcdonald, sem data



Para não morrer durante esse poço de marasmo que me acontece sempre que vou estender lençóis no varal, eu, K., desvendo o véu de Ísis e, por trás do véu, o que vislumbro são umas letras – racimos de pérola – que devem ser ouvidas como palavras que sabem o que fazem. Fizeram concha, ar, Órion?. Ou foi o Cristalino quem as ventilou? Shakespeare: “Se a palavra é sopro e sopro é vida”. Quando querem, as palavras deixam-se aprisionar pelo sopro e fingem que são concha, ar, Órion. As palavras: sombras que nada conhecem, a não ser que indiquemos – a elas – a fenda no beco por onde espiam que – sendo palavras – são sereias visíveis. Para não morrer, escuto Erik Satie: Trois gymnopédies. Para não sucumbir aos acontecimentos ínfimos e às felicidades cáusticas, eu preciso entoar mantras, vocábulos, e mergulhar na piscina, na arbor vitae, na consolação da noite.

Cartier Bresson (1908-1004)



Em Villa da Concha, guarda-sóis na praia de Pinheiros-bravos. Eu, K., observo a praia de longe e, após três cigarros de erva-cidreira, passeio meus pés pelo tapete do casarão, torno-me mais confessional e sonho que há búzio no areal. Decido ir ao mar. Desço as escadas de pedra. “Cada um de nós é um búzio”, afirmou Kierkegaard. Vindo das angras corroídas de salsugem, o vento nos guarda-sóis, que resistem. Então sou búzio e sombra de búzio no salitrado areal? O vento forte não leva o búzio nem a sombra do búzio. Ando mais um pouco pela areia fina e branca dessa praia inesquecível e penso que não há nem nunca houve, no azulado recamo do celeste céu, sequer um resquício de fronte angelical ou espíritos a esparzir unções; por outro lado, na praia de Pinheiros-bravos, pode ser que o silêncio seja o Deus que tanto espero – o Deus do suave frescor e do mantra Om. No arco do pensamento sopra uma embarcação que amanhece. Água molha o búzio, molha a vegetação dos ventos. A vista abarca, de pronto, tudo o que em Lucana é um belo relâmpago: sei de suas feridas fundas, das duas ramas tenras que se apartam como coxas de mulher, e ocultam na juntura um punhado de musgo negro. Os guarda-sóis continuam ali, cravados na areia. Se escuto um azul, é o mar que escuto e o arco do meu pensamento extrái essa voz de orvalho da pedra tosca, voz que traz à tona as miragens internas que sopram das próprias palavras: sargaço, caranguejo, alga. Não devemos escutar as palavras, mas sim o fogo invisível que há nelas – e as excede.

Franz Lizst (1811-1886).

De uma das estantes da modesta biblioteca que possuo aqui no casarão colonial, retiro um livro de Jorge Luis Borges. Um livro devia ser escrito para ser lido com os olhos fechados. Abro ao acaso e leio: “Costumo pensar, então: este é um sonho, uma pura diversão da minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre”. Alguma louça na pia. Lavo, enxugo, guardo os pratos, as xícaras, talheres e não sei se sonho com gata ou peixe. Se sonho com gata sem peixe, escuto certo murmúrio renascentista na “Nuages gris”, de Lizst. Se sonho com peixe sem gata, viro água no talo foliáceo das algas, espumo, quebrando-me na aresta do granito. Se sonho sem gata e sem peixe, saio das nuvens, levanto a fronte e escuto. Se sonho apenas com gata, “e já que tenho um poder ilimitado”, ela se torna essa mulher --- Lucana --- envolta em óleo perfumado. Finalizando: se sonho apenas com peixe eu sonho o sonho do peixe.