domingo, 29 de junho de 2008
Martin Heidegger nasceu a 26 de setembro de 1889 em Messkirch, na Schwarzwald (Floresta Negra), Alemanha, e faleceu em 26 de maio de 1976, na mesma Messkirch, então parte da Alemanha Ocidental. É seguramente um dos pensadores fundamentais do século 20, quer pela recolocação do problema do Ser e pela refundação da Ontologia, quer pela importância que atribui ao conhecimento da tradição filosófica e cultural. Heidegger foi sobretudo um fenomenólogo. É um dos maiores gênios da filosofia do século XX, ao lado de Wittgenstein, Adorno, Foucault e Deleuze.
Palavras de Heidegger
Cindy Sherman

Não é o poeta quem diz a palavra que, sendo mistério, é distante. Renunciar o entristece? A renúncia consente o poder mais elevado da palavra. É difícil encontrar a palavra para a essência da linguagem. O poeta não diz, e, reverente, escuta a palavra dizer-se. A palavra vem da terceira margem do rio, ali onde a razão e lógica devem ser servas reverentes. O poeta só não renuncia ao mistério da palavra, esta jóia delicada e rica.
Rente ao mar grosso de sal e azul e às anêmonas molhadas; debaixo de árvores altíssimas — paineiras, baobás –, Eu, S. — o peixe-espinho — com a boca seca, os olhos turvos, também aguardo Godot e Francisca B. nesse terraço do Hotel Sunset Boulevard – à beira da Tabacaria do Esteves. Sempre que chego aqui, parece que um nevoeiro me envolve e o Esteves me sorri. Desejo confessar algo: diante da beatitude, tem vezes, emboto a ponta da sagacidade e, sob nuvens velozes, sorvo da xícara de linhagem um chá verde e aproveito para descansar à sombra de um guarda-sol branco. Aqui no terraço, enquanto espero meu dry Martini, penso seriamente em desistir da cruenta e inútil pesquisa do Vazio Humano... Eu, Schopenhauer, de vez em quando, segundo os dementes e caluniadores, sou o desenrolador de livros da biblioteca de Alexandria e, à bordo de uma certa barca Nautikon, singro acima das torres circundadas de neve, de ciprestes e de corvos cruentos. Ao longe, na colina também nevada, arcanjos esvoaçam, pousam nos telhados românticos de ardósia onde a chuva se deixa cair, vazando água sobre água, chuva sobre o cair da chuva. Noturno, o rio flui de seu manancial, que é o amanhã eterno. Aqui, nessa região gelada, pode-se ver claramente, ergue-se a Torre abandonada e, nela, Hölderlin ainda respira incólume; das fendas da Torre foge toda música e todo corvo e deságua a fuga e a chuva e o pêssego e o mineral e a luz do candeeiro em fuga e a sombra molha a pele de papel-de-arroz da gueixa Yuki. Lá o vazio — o vazio do céu que molha as roupas estendidas no varal. O vazio, que nunca feriu a copa das árvores nem feriu o morto estirado na relva, antes o ressuscita e lava seu crânio com sete óleos, sete ervas; o morto que, ressuscitado, cai num carrascal sem rosas e, durante a vertiginosa queda, é capturado pela horda de pégasos que migram para a ilha de Lídia. Em Lídia esvoaçam uns cavalos brancos com cristais pelas crinas e estes cavalos brancos exercem a pureza com ferocidade e não, como disse Calígula, a ferocidade com pureza. Sobriamente Eu desfio um rosário de estrelas para Oxum, belo e aquático Oxum, dentro de Oxum não há nada, apenas existe, em Oxum, uma certa música que torna serena a turba rumorosa e singra às constelações da sibila Lythia e, diante dela, saibamos escutar — não os doutores do Grão-Veículo que insistem, em seus ensinamentos, que o essencial do universo é o vazio — mas, diante de Lythia, saibamos escutá-la, reverentes, dois minutos antes da chuva.
Posso construir edificações de vento, esquecer um jasmim e um pão embaixo do travesseiro; posso, também, ser esta sombra no muro pintado a cal. Eu sou a sibila Lythia ou Wittgenstein — fogo e água ao mesmo tempo; eu sou o nó de fogo coroado — e já fui pedra em Calcutá, musgo em Ulan Bator, jazz em New Orleans, fui para cama com a chuva e nasceu o silêncio.
Tanto me feri nos fios cortantes da concha, e já sei que não basta que deusas de água me enlouqueçam de eu sonhá-las, mas a presença delas serve, de alguma maneira, para distrair a dor, enquanto flutuo nos cellos suntuosos de Brahms aqui neste terraço do Hotel Sunset Boulevard, e, saibam, de Godot ainda nem sombra. Esta é toda a vida de um Deus que, mesmo sendo Deus, tem de ficar esperando Godot. Sendo o que sou — Deus — também respiro esta música que torna invisível as árvores, o Castelo da Pureza, e faz com que as ondas se destrocem nas pedras.
Confesso que, sendo Deus, sou o frescor do silêncio e a neblina e guardo no relicário — onde a alma é hóspede silenciosa —, o fato de haver conhecido mulheres que morreram virgens sem nunca acenderem um fósforo. Mulheres virgens são grandes cipoais emaranhados a torrentes de cristal fluindo dentro de pensamentos velados: nem procures a verdade nem afastes as ilusões. Cristalino sob o eucalipto, o vento espera a gueixa Yuki na rua da Pedra.
Com meu desprezo habitual por tudo o que cacareja, chamo o vento de “aquele que dorme num canteiro de vermes e sequer é tocado pelos vermes”. Estua no desconhecido o talismã sereneiro. Desce a luz nas imagens sonhadas de sereias visíveis — ou palavras — que nunca me pesam ou em mim duram apenas o riscar de um fósforo: este que guardo no bolso.
Desfio, como se fosse um rosário de neblinas, um roseiral na secura e adormeço se escuto o vendaval ao longe. Muitas vezes o meu desejo é simplesmente ser um filósofo com gatos brancos na neve — uma neve onde eu pudesse matar a sede.
Visto de lado o trevesseiro é pedra antiga que não perde o perfume, embora o vento fustigue as bordas duras onde adormeço. De frente, o travesseiro de pedra é retângulo sumério --- polido --- fascinado pelas voltagens nuas da primavera. Se o tenho sob a cabeça ventilada de árvores, o travesseiro de pedra revela-se santo, posto que não é só de pedra, nem serve apenas de travesseiro, antes alivia, com sua imagem, todo cansaço inútil. Assim como está, travesseiro entre goiabeiras, é tudo o que tenho nesta manhã de verão em que a infância faz sombra em meus olhos.