Nasci em Joinville/SC no ano de 1961. Sou autor, entre outros livros, de "Casa de água" (Poesia), "O livro perdido de Baroque Marina" (Romance) e "Senhora do gelo" (Novela).
Inclinado de leve para a deusa de água, o skinhead com roupas de Popeye traz mãos que abandonam no abismo todo um ritual de argúcias.
Murmura, cáustico para si mesmo: “Sou, então, skinhead com roupas de Popeye? Os de minha rua trazem-me aqui para ser julgado por esse Fariseu ressoando como tambor! Que fiz eu? Onde é o meu reino?”
O Fariseu, desatento ao esgoto que lhe suja a alma, perfila-se junto ao sólio de mármore e repete, tonitroante, uns versículos na antiga língua dos livros apodrecidos. Como o skinhead permanece silencioso, o Fariseu vocifera no tímpano dele uma brasa do inferno.
Então Jesus, o sereno, que estava perto do poço, se aproxima, estaca severo diante do Fariseu e, para que ele ouça, recita uma linha de Ovídio: “Se os bichos pudessem falar, ficariam calados”.
A voz de Jesus é clara, segura, quando pronuncia a sagrada verdade: "O reino do skinhead com roupas de Popeye não é daqui!"
Com sombrio murmúrio todos recuam, deixando o Fariseu e Jesus, a sós, no limiar do átrio escuro. Não anda sobre água o Jesus nem multiplica pedras em peixes nem água em vinho, mas, para pasmo da turba que se aglomera ruidosa, ele ordena ao Fariseu que este seja transformado numa chuva fina sobre o rio Jordão.
O Fariseu não aceita que o transfigurem em chuva: "Por que não me transmutas na conta de orvalho que estremece na ponta de uma folha?"
Com os longos cabelos caindo sobre os ombros, Jesus desiste de transformar o Fariseu em chuva. Opta por algo mais leve. A turba, amontoada ao canto do átrio, aguarda o veredito. Jesus convoca as forças angélicas e confirma a sentença: "A partir de agora tu não és mais um Fariseu, mas um peixe com sede e, para esta sede, não há saída".
Ela se molhava na chuva do passado, porque certamente o sábio tinha razão quando pronunciou que nunca está chovendo, sempre já choveu. Se ela soubesse que a chuva só molhava, ficaria mais tempo na chuva. Dois domingos depois retornei à sua casa e ela continuava molhada com a chuva do passado. Me contou que teve um sonho grotesco: sonhou que, por ordem de Himmler, dois homens da Gestapo penetraram no apartamento do general Schleicher, em Berlim. A filha dele, que abriu a porta, foi fuzilada na hora. Os homens da Gestapo passaram por cima de seu cadáver e, quando Schleicher pegou na pistola, foi fuzilado junto com sua mulher. As chuvas do passado estavam todas naquele canto da sala, bem ali, ó, atrás do vaso de samambaia. Ela se molhava nessas chuvas, enquanto abria a lata de sardinha.
As duas jovens tatianas com flores de manga em torno do fino pescoço, as duas nadando em volta da barca abandonada à orla. O casco lateral furado, quilhas enferrujadas, mastros decaídos.
Há algo de sinistro na antiga barca que balouça junto ao capinzal à beira-mar.
Uma das jovens tatianas nada mais rápido que a outra, e traz dentro da tanga conchas azuis, mostra ao vento e ao céu, dentro da água, o feitiço de sua nudez queimada de sol. O que ela pronuncia poderiam ser palavras que indicam algo para a outra ver.
As palavras da outra jovem tatiana seriam as mesmas do idílio; a alma é que é outra, a alma e os longos cabelos negros. A que nada mais rápida em volta da barca abandonada é a própria cabeça da chuva, confunde-se nas águas do mar grosso; esta não é deusa nem santa, mas gente humana e confidencia segredos em prosa de sala.
Cavaleiros negros, cavaleiros negros com sóis tatuados no peito, cavaleiros negros cortam a cabeça da banhista de Valpinçon, arremessam ao ar.
Cabelos e olhos entre nuvens.
Cavaleiros negros batucam o tambor, que já não pode ser ouvido pela cabeça arremessada ao ar, alta, entre nuvens, --- rememorando ancestrais --- uma cabeça no azul gelado.
Vasos de barro, onde cisne e música somem. Se olham --- cisne, vasos de barro, música --- imersos na voz, aderidos ao corpo que logo finda neles --- os dourados, com música transbordando de vasos de barro moldados pelo sopro do cisne que os dias desdouram, como se a mais alta sina fosse perder vasos de barro, música, voz. Os dourados somos todos, esquecidos do corpo que, antes das constelações, silenciava uma prímula, um grão de lua na altura do peito, na altura do peito dois vasos, não de barro, de seda fina do arrozal, dois pulmões, dois cisnes: vasos de música
Buddha, o Santo.
O SOL ESCURO
O homem do calabouço passeia sob o sol escuro: --- Se o sol é a sombra de Buddha, quem é Buddha, então?
Buddha vaticina: --- Hoje mesmo os teus olhos iluminarão o sol.
O homem do calabouço argumenta: --- Altamente concentrado no unilateral, jamais serei claro.
Buddha diz ao homem do calabouço: --- Em você é real e claro o que é invisível, falante de uma fala que é da gramática só uma lasca.
Eu te tratei como príncipe, meu Deus, mas foste mau com a espécie. Dizimaste inumeráveis chuvas que estavam suspensas aos quatro ventos. Entre os teus longos dedos brancos, a negra ardósia de nosso túmulo. Como não te comoveste com tantas ondas tenras de constelações sumindo? Se em teu coração celeste houvesse apenas a sede de alcançar a estrela, se evaporaria do jardim a morte. Entre barqueiros acordaríamos leves --- e príncipe que és, com olhos de céu --- ressuscitarias cada
Quando o filósofo Mo tsi apodreceu, pôs-se no túmulo a saborear nuvens caídas na carapaça do rinoceronte: viu mar no alto do eucalipto. Viu frase de garoa na guelra do salmão. No nojo em que se viu imerso, banhou-se todo em fedor e ácaros: quis desfiar o rosário de buirás na chuva, quis sonhar de orvalho o rinoceronte. E, durante o apodrecimento seu, no túmulo sonhou linhagens aquáticas: estava próximo da vegetação dos ventos, estava uma barca na nevasca, sua alma acendeu um oriki.
Em mim alma de barro cru e, claro, eu preferiria residir num harém, --- harém aquático --- sem estorvo do areento. O linho alto das nuvens em queda agora: águas águas águas. O coração esquecido no aguaçal. O fero, em mim, transparente leão branco, que é manso e silente. Eu tranqüilo numa das camas do harém aquático, e, a cada vez que se entreabre a porta azul, fulge a asa do anjo antiqüíssimo e o açude de uma Sibila antiga escuta a pele minha em chamas. Se abre outra vez a porta azul: ave-do-paraíso, com sede, me olha.
Ô ressurreição, dê água a meus ossos, me livre da aboiz de achar que eu sei tudo. Sou bossa de corisco, silêncio de adro, diamante que não, que sim. Ô ressurreição, dê arejos às trevas, me livre da falta de doçura, do vício de não escutar as trepadeiras trêmulas no aljibe.
Tudo volta ao silêncio.
Nunca estive entre as folhas da abanga. Nunca me chamaram de Beechmann. Ô ressurreição, que o que agora vislumbro não se perca, não se perca. E alguma coisa disso tudo seja meu: o linho da mortalha dos anjos, a xícara branca, o sorriso dos Reis, os passos no desconhecido, as delícias, os cinamomos, os vasos cilíndricos de barro, e mais tudo o que, por distraído, esqueci.