sábado, 9 de agosto de 2008

“É perfeitamente pensável que o esplendor da vida circule por toda parte, e sempre em toda a sua plenitude, acessível mas velado, profundo, invisível, longínquo. Mas ele está ali, sem hostilidade, sem relutância nem surdez. Com a palavra certa acode ao chamado. Essa é a essência da magia, que não cria, mas convoca”. Depois de ler o aforismo acima de Kafka, partir a torrada em duas e beber o café, Lucana olha para a janela com vidraças azuladas de seu quarto. Leva um susto e argumenta em silêncio: “Não, não é uma foice, é apenas a cortina”. Fica olhando a cama desarrumada, desnuda-se, as águas do chuveiro choram desesperadas e ela só tem tempo de pensar que nunca havia tocado a pele de K. O sabonete Phebo recende aroma de noite sossegada por toda a casa. Também o mantra recende, que Lucana entoa: “Tadyatha om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha”. “É assim, avance avance, vá adiante e transcenda, vá diretamente adiante, firmemente enraizado na iluminação”. Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água: crótalo, crótalo, crótalo. Folha de hortelã no chá frio. Lucana morde conchas finas. No domingo recalcitrante o fresco de águas indo entre galhadas e pedras. Lucana sorve, para assombrar o assombro: ouro-crótalo, fina água de goivo, um risco de lágrima na concha. Adoça a espinha do peixe no cantábile que vaza do gramofone e se derrama nos tímpanos. O que salva é escrever nesse estado de óbvia distração, encostado à inclinada palmeira musical que torna mais suportável a banquisa.

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