terça-feira, 4 de março de 2008

C. Rugosa, 1898

A princesa Silen
ACORRENTADO

999 noites 999 dias
acorrentado ao muro da princesa Silen.
lá dentro, no casarão de pedra,
a princesa de olheiras fundas.

muro da princesa Silen
coberto de vergônteas molhadas.
999 dias
999 noites

acorrentado ao muro:
a princesa Silen nada faz
para saciar a sede

do acorrentado que,
enredado nas vergônteas molhadas do sonho,
adormece nos braços da noite fria.

Robert Van der Hilst


UMA NOITE COM CHUVA

Depois fui trançando miúdos peixes azulados

nos cabelos
de
uma
noite
com

chuva

Maciej Trzepalka


Anon, 1870


Na alma continuo sendo uma daquelas gueixas com neve no negro cabelo
Se não se escutam as folhas do arvoredo, Lucana gasta os olhos numa página avulsa do poeta Almafuerte: yo soy un palmar plantado sobre cal e pedregulho. Os vocábulos lidos na frase anterior já estão mortos, derrotados, e unicamente a retina do leitor pode trazê-los à vida com um sopro. Se o vocábulo é sopro e o sopro é vida, sopramos em yo, sopramos em soy, sopramos em un, sopramos em palmar, sopramos em plantado, sopramos em sobre, sopramos em cal, sopramos em e, sopramos em pedregulho. Lucana confessa ao palmar plantado: “Eu sou uma daquelas víboras descascadas junto à fonte fria. Com pinças curvas eu arranco o cérebro dos fariseus – gruta com lesmas – pelas fossas nasais. Eu, com um garfo de ouro, faço um talho na cara da prosódia sonolenta e, debaixo do chuveiro, tento captar, apesar da água torrente, o sentido das palavras em Fernando Pessoa: ‘Atinjo a força de palavras, não para realizar a obra que eu nunca poderia realizar, mas ao menos para dizer com simplicidade por que razões não a realizei’. No espelho, enquanto me enxugo, verifico que na alma continuo sendo uma daquelas gueixas com neve no negro cabelo. Escuto a balada de Narayama e, com a colherinha de açúcar, faço nevar no espírito do chá”.

Luca Gilli


A palavra neve: sônica, nívea.
K. escreve uma carta ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto (.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”. A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios. A palavra neve: sônica, nívea.

Benjamin Tankersley