sexta-feira, 9 de novembro de 2007



O DEUS NASCEU DO MEDO
QUE OS HOMENS EXPERIMENTARAM
PERANTE O RELÂMPAGO

Com o livro perfumado numa das mãos,
passo horas na varanda à beira da baía da Babitonga.

Medito: escravo é aquele que tem a língua cortada.
No oco búzio o vazio se refaz infatigável.

Perante o relâmpago, os homens têm medo,
pensam que o relâmpago é Deus,

depois saem em disparada rente às cercas.
Ao sopro do terral, escuto vindo das ondas:

no princípio era a palavra
e a palavra era Deus.



O quarto azulado evaporou.
Cavaleiro sombrio cobriu-se de trevas.
Ficar tocado de água d’alva
e com a relva colher pedras de orvalho.

O amor passou no trem ajasminado.
Furei jazz e vendaval na nuca.
O vento negro foi devastador,
esqueceu do menino entre cães.

A substância cristalina da brisa
traz o quarto à margem do sonho:
furado de névoa respiro atravessado,

mas ainda posso pressentir chuva pelas camas
e de nós dois restou apenas aquela chinesa
que corria atrás das árvores.

Arte bizantina


PRIMEIRA VIAGEM PARA BIZÂNCIO
Opus 1 – O vento vivo

O escrito se torna vaso de Bizâncio.
A cripta e o pó acordam dourados,

se Johann Sebastian Bach os vara
com a brisa barroca de acordes

– que acordam os quatro ventos –
ventos que circulam atóis,

atóis de Bizâncio,
neles respiram mulheres de nucas brancas.

Uma delas, se a víssemos,
as frondes coroaria de rosas para recordar,

em prosa castelã,
que o náutico aparelho que avança,

rés à orla de Bizâncio, traz à bordo
a respiração de Johann Sebastian Bach.

Cúpulas de Bizâncio (atual Istambul/Turquia)


SEGUNDA VIAGEM PARA BIZÂNCIO
Opus 2 – Loa ao ofício de construir barcos

Olhar de dentro as partículas sonoras
das vigas sob ar e aura.
Os barcos saíam a sete mares,
com sete marés pelos velames.

Soa o martelo na antiga linha
do vento que o construtor imagina.
Os barcos saíam a buscar brisas
que nenhum Deus imaginaria.

Quem lima a âncora sabe a dor do ferro.
Quem lixa o pó esquece a relva.
Brutas marteladas, os barcos se erguem

embalados pela onda futura.
Talvez porque os barcos acordem cegos,
necessitem de marujos que os velem

nas longas noites das ribeiras.

As antigas muralhas de Bizâncio



TERCEIRA VIAGEM PARA BIZÂNCIO
Opus 3 – O vaso

Tocar o vaso de Bizâncio vivo,
mesmo a sombra na parede branca,
bem como o sopro que o escultor Guyau Ouspenski
esqueceu na superfície de louça azul
do vaso de Bizâncio.

O céu do deus nos exilou – nós aqui –
e para alcançá-lo só temos, talvez,
alguns grãos de alaúde e Saaras de palavras:
vaso, sopro, louça.



Agora vou lhes revelar o Mysterium: Eu, Rimsky-Korsakoff, sou Deus, sim, sou Deus, mas não perdi a simplicidade. Amo apenas uma das deusas: Lythia. Se sou o que sou – e sou Deus – devo tudo a ela. Um homem não vale nada se não pensa primeiro na mulher. Posso construir edificações de vento, esquecer um jasmim e um pão embaixo do travesseiro; posso, também, ser esta sombra no muro pintado a cal. Eu sou Deus – fogo e água ao mesmo tempo; eu sou o nó de céu coroado, e já fui pedra em Calcutá, musgo em Ulan Bator, jazz em New Orleans, fui para cama com a chuva e nasceu o silêncio. Tanto me feri nos fios cortantes da concha, que não basta que deusas de água me enlouqueçam de eu sonhá-las, mas a presença delas serve, de alguma maneira, para distrair a dor, enquanto flutuo nos cellos suntuosos de Brahms aqui nesse terraço do Hotel Sunset Boulevard, e, saibam: de Lythia ainda nem sombra. Esta é toda a vida de um Deus que, mesmo sendo Deus, tem de ficar esperando Lythia. Sendo o que sou – Deus – também respiro esta música renascentista que torna invisível as árvores e faz com que as ondas se destrocem nas pedras como louças. Confesso que, sendo Deus, também sou o silêncio e a neblina vivificante, guardo, no relicário – onde a alma é hóspede silenciosa – o fato de haver conhecido mulheres que morreram virgens sem nunca acenderem um fósforo. Mulheres virgens são grandes cipoais emaranhados a torrentes de cristal fluindo dentro de pensamentos velados. Cristalino, o vento não procura a verdade nem afasta as ilusões. O vento espera Lythia na rua da Pedra e, quando ela chega, lhe dá um banho de vento. Com meu desprezo habitual por tudo o que não posso ver, chamo o vento de aquele que dorme num canteiro de vermes e sequer é tocado pelos vermes. Estua no desconhecido o talismã sereneiro. Desce a luz nas imagens sonhadas de sereias visíveis, e sereias, para Fernando Pessoa, são as palavras, palavras que nunca me pesam ou em mim duram apenas o riscar de um fósforo: este que guardo no bolso. Desfio, na neblina, um roseiral na secura e adormeço se escuto o vendaval ao longe. Muitas vezes o meu desejo é simplesmente ser um filósofo com gatos brancos na neve – uma neve onde eu pudesse matar a sede.