
terça-feira, 2 de junho de 2009
Vi o silêncio, quis guardar no espelho. A eternidade quebrou o espelho, não o silêncio. Este durava no vento luminoso da noite, na concha azulada. Retido no espelho, o silêncio e o miosótis. Vaso de porcelana à nossa porta, música alada à branca superfície da luz que do vaso emana.
Porcelana é luz material que vem à tona e adquire a serenidade de um piano de Chopin na noite que mistura o azinhavre de nossa fala, sagrada por circunstância, à pureza salina de uma estrela que, vista de perfil, é toda a nossa infância.
Romper a cabaça com pedra de violoncelo. Verter o líquido de copioso cristal no deserto a queimar a alma. Pedra com que Bach fez ablução no século 17. Bach lançou a pedra na cabaça e viu o líquido escorrer pela alma até extinguir-se a dor – a que nos devora sem piedade. E o sonho, astúcia da vigília, é noite suave e afunda no líquido que verte da cabaça esburacada. O líquido não anula o fogo, antes cria liames, pois a função da música, segundo a Lei da Harmonia das Esferas, é unir água e fogo, e conferir levezas distraídas ao deserto.
Dá para o quintal de vento e de monturos a respiração de Deus, mais conhecido como “o mais frágil de todos”. Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem. – Confundiram tudo – diz Deus, e do rio de seu coração entre neblinas fogem acordes de violas à beira do abismo, onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música. Deus iça a pandorga e o fio que a iça está encordoado de arco-íris sob a chuva. O vento no quintal é a ressurreição. Deus, quando vem o vento, ilumina-se com as partículas cristalinas que o sol espalha no coração da bolha de sabão – coração de Deus.
Meu único triunfo é a concisão. Consistência do jardim de miosótis. Imerso no vento o capinzal ondula contra o azul noturno da escarpa. A leveza do vento espreita Sirius. Olhos: pérolas duras em poços escuros. O silêncio minimalista da pérola. A lonjura que há no que é azulado. À sombra o diamante te aguarda, sofrido de quantas senhas esqueceste.
O que é verdade? Escutar maré de estrelas, desistir da farsa, vocábulos, pavores e, nas noites, soprar o carvão, sabendo que nele o escuro é musical.
BANHISTA DE VALPINÇON
Cavaleiros negros,
cavaleiros negros com sóis tatuados no peito,
cavaleiros negros cortam a cabeça
da banhista de Valpinçon,
arremessam ao ar.
Cabelos e olhos entre nuvens.
Cavaleiros negros batucam o tambor,
que já não pode ser ouvido pela cabeça
arremessada ao ar,
alta,
entre nuvens,
– rememorando ancestrais –
uma cabeça no azul gelado.
Há um pensamento do filósofo alemão Schopenhauer, que li em "O Mundo como Vontade e Representação", que reza assim:
O ponto em que a Coisa-em-si entra mais imediatamente no fenômeno é aquele em que a consciência (ou mente sem palavras) ilumina a Vontade.
A Vontade é, para Schopenhaeur, irracional. A Vontade, no fundo, não sabe o que quer. E, para educá-la, só há uma saída: focarmos as coisas que nos cercam (ou as coisas que imaginamos) com o Vazio da contemplação tranqüila.
Segundo Kenzo Awa, mestre do Kyudô (Caminho do Arco), se quisermos acertar o alvo, devemos proceder assim: “Na máxima tensão, sem intenção”.
Algo dispara a flecha, Algo acerta o alvo.
Algo: outro nome para o Deus, para a quintessência.
Mas também Algo
diz pára de ressentimento
diz pára de medo
diz pára de mentir
diz pára de sofrer
diz pára de desamor
diz pára de pobreza
O Eu, que só será Eu se for um Vazio reverente, se torna o claro espelho do objeto. Wu wei: ação na não ação. Noutras palavras, o Eu deixa fluir, reverente, o Algo que o rege no íntimo; o Eu não se intromete, deixa a onda jorrar, a música ser música.
Vazio (Capítulo 1 do Tao): "Não sendo, podemos contemplar sua essência".
Objeto (Capítulo 1 do Tao): "Sendo, apenas vemos sua aparência".
O Deus, segundo o Evangelho são João, “é Espírito”. E, sabemos, o Espírito sopra onde quer.
Se me permitem um exemplo: Na máxima tensão, o Eu profundo de cada um de nós contempla, sem intenção, a seguinte cena prosaica: um bule que verte chá fervente na toalha de linho. A Coisa-em-si (que é libérrima e irracional por natureza) é que retém a potência profunda do que está acontecendo com este bule que verte chá fervente na toalha de linho. Se o Eu se intrometer nesta imagem do bule que verte chá fervente na toalha de linho, o Eu só terá a fantasia, a farsa, e se transformará num bicho peludo de longas patas, mais conhecido como ego (ou falso eu interior). Por outro lado, se o Eu deixar fluir a Coisa-em-si deste bule que verte chá fervente na toalha de linho, aí o Eu terá a presença do Algo, do Deus que, respeitado em sua ancestralidade, virá à tona e revelará ao Eu todo o Seu Mysterium.
E sendo Mysterium, é improviso, é Vita Nova, é Algo, é o Deus, é o paraíso, é o jazz do coração.
Nunca é demais recordar a etimologia do vocábulo Deus: vem do sânscrito –, onde é grafado D'jeus e significa lua clara no céu: mente silenciosa, sem sonhar.
De onde se conclui que o Deus, tendo forma lunar, é o feminino.
O Deus, o Algo, é luz, é consciência.
A quem o Deus serve, a quem o Algo serve? A todo Eu que tiver consciência do Deus, do Algo.
Quando pronuncio a palavra feminino, não me refiro à mulher, mas ao Ser, que tanto pode ser macho ou fêmea.
Há homens que são mais femininos que as mulheres.
O cano do canhão é o pênis masculino; os edifícios pontiagudos são pênis masculinos; o punhal é o pênis masculino.
A árvore é feminina; a pérola é feminina; o vento é feminino.
A Coisa-em-si: aquilo que independe do espaço e do tempo.
A Coisa-em-si independe da causa e do efeito.
Segundo Platão, uma Idéia é aquilo que sempre é, mas nunca vem a ser, nem deixa de ser.
Idéia: objetividade imediata da Coisa-em-si.
Para Schopenhauer, a Coisa-em-si é pulsão vital (a Trieb freudiana: força vital). Pulsão como discernimento vital? Ainda mais: pulsão como discernimento vital do discernimento vital.
Pulsão (a partir de um aforismo de Lacan): objeto jamais fixável de uma vez por todas.
Fixar o que não pode ser fixado, isto é função da arte que cria a consciência que ilumina a Vontade.
Para Schopenhauer a maior das artes é a música. Ele a menciona em "O Mundo como Vontade e Representação": se tudo findasse, ainda não findaria a música.