segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Franciszek Starowieyski, sem data


Walter Benjamin, pela primeira vez sozinho no soturno casarão de seus antepassados, não pode abandonar a barcaça ao vento nem esconder esse corpo de mulher que furou à faca, nem urinar atrás da canoa, junto à âncora de ferro, nem se esconder do rumor da vida alheia, mas pode olhar a vida de frente e, ao se aproximar da vida, ela se transmuta em chuvas nas tábuas da varanda do soturno casarão onde, nesse exato momento, Walter Benjamin escreve suas Memórias de Leipzig.
Do outro lado da ilha de Pedra, bem próximo do filósofo alemão, eu moro numa pequena Casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade era viver numa Casa de vidro. Certa vez grafou no caderno: “Silêncio, quero passar onde ninguém passou, silêncio”.
O corcunda só se corrige na cova, não cansam de dizer os escolásticos. Eu, que moro numa pequena Casa de vidro, ouso vociferar: Ao inferno os pensadores de sistemas lógicos! Não só se pavoneiam de ter feito qualquer coisa, como também enlouquecem ao tentar explicar o vento, e se incluem na idiotia universal quando insinuam que o céu foi criado por eles.
Poderia citar, aqui, o culto Voltaire, que escreveu: “Os homens não conseguem fazer um verme, mas criam deuses às dúzias”. Claro que Voltaire pode nunca ter dito isso e eu, vil, atribuí a ele a frase pronunciada. Mas então eu seria mais arguto que Voltaire, posto que o dito é excelente.
Horas depois, ainda na pequena Casa de vidro, tive um pensamento selvagem: o de passar a língua na pele salgada das meninas virgens --- na pele da nuca, na clavícula, nos quadris assustados, na sombra espessa do púbis.
Eu sempre acreditei que eu próprio incitara Walter Benjamin a furar aquele corpo de mulher com a faca, para o fim de aniquilá-la mais rápido, e capturar o céu que aquele corpo esguio guardava num relicário qualquer entre as vértebras, se é que realmente algum dia houve céu, corpo de mulher, vértebras, mas a Casa de vidro existiu desde a primeira respiração.
No fim de uma semana, fui ao soturno casarão de Walter Benjamin. Percebi de imediato que ele não havia conseguido abandonar a barcaça ao vento nem esconder o corpo de mulher que furou à faca, mas ainda urinava atrás da canoa, junto à âncora de ferro, e o rumor da vida alheia ele o tinha sempre que lavava a xícara ou quando abria a geladeira em busca do alface.
Walter Benjamin não deu por minha presença. Eu retornei à Casa de vidro, esqueci um disco na vitrola, fiz café e escrevi até que a chuva lavasse os dejetos brancos das gaivotas no transparente telhado.

Clare Strand, sem data


Tudo isso acontece em Villa da Concha – esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com molas de relojoaria --- a hora --- e bebe no fólio o ditame bíblico: “Pois serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido, como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”. Águas do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão, exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos telhados do casarão. “Passar”, diz K. “da palavra tosca à palavra clara é sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que esta marca simples”. No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas trepadeiras da cisterna.


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Vivaldi
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(Ofra Harnoy)