quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008


Carlos Drummond de Andrade em sua casa no Rio de Janeiro
Escutar Drummond
na voz de Drummond

http://www.youtube.com/watch?v=CaexXJ6UFnw&feature=related

Disco voador
Aparição de um disco voador na China

http://www.youtube.com/watch?v=VHwMT0QcWb4&feature=related

Escutar Bono Vox, do U2,
entoando pérolas do álbum "POP".
Dedico estas músicas
à Shânkara Lis, minha filha.

http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?opcao=umcd&nomeplaylist=000250-1<@>Pop

Jardim zen
Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas da Casa de Água, o Jardim de Pedra, a nudez de Lucana. A grave introdução de uma sinfonia de Brahms --- o tumulto dos violoncelos e dos oboés --- que aponta para o renque de altíssimos eucaliptos erguidos verdinegros sobre a vegetação circundante. Lucana escuta Brahms e percebe, a um recanto da Casa de Água, o vaso de cerâmica --- cretense, mediterrâneo --- que amadurece um filete de luz em seu bojudo ventre. Lucana exposta ao sol da varanda da Casa de Água, procura salvar a mensagem da água --- sombra de verdade, apenas --- apura o tímpano, escuta as palavras tontas das lavadeiras e essas palavras cobrem a fonte.

Duke Ellington (1899-1974)


Quis o destino, e possivelmente o deus verde dos hieróglifos, que K. folheasse “Os Manuscritos de Hervum”, enquanto meditava sob leques de palmeira. Na epígrafe de tão renomado manuscrito, depois de algumas xícaras de café, lemos a epígrafe de Anaxágoras: “Chega um momento em que cansamos de tudo: amor, repolho e pôr-do-sol”. Na página 31 dos “Manuscritos...”, Hervum inscreve a linha de frase: “Tenha sempre um peixe à mão, finamente esboçado, que o mar pode que retorne em auras”. Jogo o livro de Hervum pela janela e peço: “Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais. O que adorei até o osso, onde respira? Ido, dissoluto, se estende ar suave acima dos telhados das casas. No Oldsmobile verde-claro da ilusão chega Lucana sem me avisar, mariscando portas d’ouro entre duas ondas do mar. A çankha hindu, sabe-se, afugenta demônios, excita os deuses benévolos. A çankha da respiração de Lucana”. Comentário dela, depois de ter lido a madrugada inteira: “Toda devastação traz em si o germe de seu idílio. Viemos do geena; alguns ainda estão lanhados com as labaredas de lá. O coroado nó de fogo e o jasmim preparam o córrego nupcial”. Lucana ainda sugere: “Nunca esqueça de quassar a raiz das cactáceas no areento”. Eu, K., aqui no meu casarão colonial, à sombra de figueiras, faço girar na vitrola a barca de Duke Ellington nascente.

Banheira bizantina de Balthus (1908-2000)
Alguma coisa nova sempre desvendamos, se estivermos atentos à sombra de um cacto. O espaço, aqui, é estruturado com a sobriedade e a tenra luz de alface espraia-se por tudo. O casarão com arcos de pedra e o lavatório com mosaicos franciscanos; e uma porta envidraçada sobre uma sacada que tem, como único ornato, as flores do espírito santo ondulando. As bilhas de cobre no beiral da varanda: o salitre nunca as enferruja se polidas com lenços. O casarão, que dá vista para o mar, na borda de um abismo que obriga a cerrar os olhos. O que faço eu com essa fenda de guelra na face? Aqui sofro, por detrás da porta envidraçada, por um absurdo que me excede, a eclodir um tufão na alma, a tamborilar o único dente, agudo e penetrante, no céu da boca da arraia. Nesses antiqüíssimos dias de chuva, em que os eucaliptos meditam cousas longas, eu deito sob telhas de barro, passo os dias com envelhecidos tomos de Arcipreste de Hita e, se é domingo, a lente bebo, que leu em Camões, e me clarifico de verde eternidade. Coberto de sombras leves, salpicado de tufos de folhas carnosas e lascas de líquen, o casarão onde vivo se esconde à sombra do alto carnaubal. Um dos tomos de Arcipreste de Hita discute a proposição de Locke a respeito de um vaso. Para Locke “... o volume e a forma estão realmente no vaso. Já a cor, aroma, tepidez e frio não estão”. Aguardo a calígrafa Lucana, aguardo-a com essa loucura viscosa; observo a textura do tabaco que, há cerca de três mil anos, já fumavam os maias. Os eucaliptos, estáticos, que cercam o casarão, desejariam ser esses leopardos que invadem o templo e bebem a última gota dos cálices sacrificiais. Não é mais o tempo de Offenbach e da opereta. Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela. Esperando Lucana no bar Gallo del Viento pressinto que, daqui a cem anos, meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. Lucana marcou encontro comigo no bar Gallo del Viento, porque resolveu conhecer de perto o autor das escrituras que esbocei no branco árido das folhas de papel. Que estejam --- as palavras --- grafadas nas áridas folhas, pode ser belo, mesmo sem pé nem cabeça alguma frase, desde arranjadas de forma harmônica --- elas --- as palavras, as chuvas. Eu escrevo à sombra dos ventos: o volturno, o ábrego, o noto, o lôbrego, o bóreas, os monções, os etésios, os mareiros. Cito uma epígrafe de Camões: “Que quero eu mais, que o mais não seja menos?”. Faz vinte anos estou recluso nesse casarão colonial, emparedado. É daqui que vou sair para encontrar Lucana pela primeira vez e acariciar, em sua alma, os arabescos antigos de uma sala de banhos bizantina.

Balthus (1908-2000)


A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela --- água de chafariz --- que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo em chamas. A lâmina da morte abrasa a iguana e a reduz a cinza. Imersa em profunda fonte fria, Lucana, na cama de chuva, os olhos macios e perdidos, escuta, com órbita teimosa de bicho calado, que, segundo Petrarca, “...de um polido e vivo gelo provém a chama que a calcina e a destrói e tanto as veias resseca e a alma esboroa...”, que, invisivelmente, ela se degela. Lucana, a senhora do gelo, desvela nos búzios que a existência do céu apenas demonstra que somos ossos, não existimos, e só o céu dura na pura claridade matinal.

Ânfora grega
A BANHISTA

A pálpebra da banhista
encostou na pele do jarro,
porque fazia 40 graus à sombra do cipreste.

O real, o um do jarro,
é antecedido pela palavra jarro,
pelo que em Deus já é jarro,
mesmo sem jarro ser ainda.

Enquanto jarro-coisa, o jarro é irreal,
e a pálpebra da banhista
continua encostada na pele do jarro.

Agora, para que respire,
o inexistente jarro-coisa
converte-se no uso do jarro-palavra,
onde a banhista encosta a pálpebra.

Edward Weston


MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA
(De um poema de Hilda Hilst)

Um sol de gelo paira a Casa de Água:
o que eu adoro é ninfa imaterial,
agreste brancura da flor de mandacaru,
dançar na Casa de Água de Georgia O’Keeffe
ou sonhar o pescoço de Vishnu,
depois rabiscar águas com barcas brancas.

O sonho humano se abrupta nos escolhos.

Georgia O’Keeffe lambe, com língua de vaca,
o sal do megafone.

No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de Água.
7 obras-primas de Gustave Doré
(1832-1883)







Bette Davis


Man Ray


Tudo isso acontece em Villa da Concha – esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com molas de relojoaria --- a hora --- e bebe no fólio o ditame bíblico: “Pois serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido, como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”. Águas do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão, exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos telhados do casarão. “Passar”, diz K. “da palavra tosca à palavra clara é sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que esta marca simples”. No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas trepadeiras da cisterna.

Cartier Bresson


Então K. sai do quarto e caminha à varanda. Percebe, na enseada, os primeiros movimentos que aparecem ao longe, no ondular de canoas mansamente próximas de cascalhos, canoas abandonadas ali por nativos quase nus. K., durante a tempestade que açoita Villa da Concha, vai ao peitoril da varanda do casarão colonial e lê aos quatro ventos o texto que escreveu em oferenda à santa Teresa de Ávila: “Ela não cultiva pássaros azulados em gaiolas de ouro: rebebe, sim, o encharcar dos brejos. Aí, se acorda, suspende uma folhagem. Sob o chuvoso arco do mosteiro se deu o que se deu – o isto é! – santa Teresa de Ávila avança pela escadaria de pedra para se espiar parada, imersa na luz. Ela respira o sono tempestuoso de lianas durante o vendaval; é o ferrão escuro do escorpião, a cantaria barroca e o sino: queima, com as palavras ferro e brasa, a pele transparente dos anjos”.

Nicholas Hughes


Um dos textos de K. principia assim: “A língua inchada suja de livores de azoto e de crostas, no lábio seco de tanto fumar. A lavanda que sobe da roupa branca estendida na arca. Aproxima-se um dos assassinos, puxador do fumo louco, e seu nome é Jairo. Toca numa das franjas do manto do Homem Puro e diz: ‘A língua da deusa está morrendo. Vem e impõe nela as mãos para que ela respire’. Ainda balbucia gosmas de fala, quando chegam alguns e comunicam a Jairo a notícia árida: ‘A língua da deusa morreu. Por que perturbas ainda o Homem Puro?’ No sobrado verde, em Villa da Concha, essa língua: órgão muscular, musgoso, situado na cavidade bucal da deusa, é uma barata leprosa com caspa na sobrancelha ou carniça do sovaco da cárie. O Homem Puro, em surdina: ‘Não temas; crê somente’. Em torno e dentro do sobrado mulheres de saia florida e homens de chapéu negro choram e os punhos em faca clamando contra o céu. O Homem Puro ainda pergunta: ‘Por que este alvoroço e estas lágrimas? A língua da deusa não morreu, está envolta em sono.’ E descreve, com o dedo, um pequeno arco na têmpora da língua: ‘Língua deusa talitha cum’ --- o que significa: ‘Língua da deusa, eu te digo, cura-te’. A cárie leprosa com barata na sobrancelha não se curou – mas a língua da deusa, sim”.

Andrej Glusgold


Um pedaço azul de sabonete caído no ladrilho. O clarão súbito e breve de um relâmpago de Heráclito conduz as coisas todas ao fluxus. Eu traio Lucana com essa morena que encontrei na rua das Larissas Descalças. Estamos no Motel Agreste. Daqui posso ver a Casa de Água pela janela que, parcialmente fechada, deixa penetrar o ar, mas torna sombrio o ambiente. Se Lucana me telefonasse, eu lhe diria que mergulhava no mar, quando, na verdade, o que eu mergulhava eram os dedos entre as coxas dessa morena de olhos azuis, cabelos pretos. Os ramos afundados ungidos de Vazio, para não esfolar a pele quando o andamento de águas um contra o outro esfregamos. Daí é o instante em que as águas virgens jazem ao lado da friez de corais ouro-alaranjados, águas virgens estiradas no silêncio. Claro que Lucana nem desconfia que estou aqui nesse motel e acariciando esse paraíso de olhos azuis, cabelos pretos. A morena é uma dessas colhedeiras de mariscos e sopra de minha alma a ferrugem e o remorso. Sobranceira, ela rapta-me da ante-sala da loucura, e é por isso que, com haste de bambu, tatuo na minha pele a silhueta que é divina da colhedeira de mariscos. Ela esquece ervas-de-cheiro entre meus pés, nas cortinas e nos lençóis onde trançamos leves desesperos. Coroada quer coroar o que no silêncio é gramática da fonte. A de olhos azuis, cabelos pretos, é um lagar onde não há uvas cáusticas. O que eu sei, dela, é a jângal, e aqueles olhos, com sede, como se vindos de um céu de safira oriental. Dançamos, num andamento vivo, a sardana com o tamboril e a flauta e, à sombra de grandes barcas, com os corpos nus passamos por sobre as algas, os náufragos, as florestas submarinas, os hortos subaquáticos, os bosques molhados. Fora do Motel Agreste, o mar adora o abandono de toalhas molhadas que jogamos no piso eu e a morena – duas águas que se encontram na madrugada: mesma estrela na proa e uns poucos cabelos na correnteza. A presença de Lucana na minha mente culpada – o cheiro dela, de sassafrás, que chega do extenso de cercanias em grossas ondas de luz salina, beatifica de longe, aclara os lençóis, os olhos azuis, cabelos pretos dessa morena e penetra, essa presença de Lucana, a minha cabeça cravada com os espinhos da culpa. Penso que eu não deveria ser como as virgens imprudentes e que devia andar sempre com uma caixa-de-fósforos no bolso ou ser como a nadadora que esquece nas águas formas exóticas de jarras. Um pedaço azul de sabonete e nunca mais vi sequer um resquício dos olhos azuis, cabelos pretos. Apenas restou, de nosso encontro, o que resta de tudo: a brisa, o incenso, o mar como uma louça que se quebra nas pedras.