Nasci em Joinville/SC no ano de 1961. Sou autor, entre outros livros, de "Casa de água" (Poesia), "O livro perdido de Baroque Marina" (Romance) e "Senhora do gelo" (Novela).
Cleópatra nasceu em Alexandria no ano de 69 a.C. e morreu na mesma cidade em 30 a.C.
Diálogo dos mortos (a partir de um texto de Luciano de Samosáta)
À beira da piscina da casa de Freud, surge o seguinte comentário:
– Esse monte de ossos aí é da Cleópatra.
O gordo Pepe sorve a espuma lateral do copo de cerveja e diz:
– Então, foi por essa Cleópatra que morreram mil bravos? Foi por ela que sucumbiram tantos egípcios e bárbaros, foi por ela que tantas naus afundaram no Bósforo, e que tantas cidades foram escorraçadas do mapa?
Moro no Graben, perto do Café Continental, enterrado vivo num cubículo de cimento, que não permite que eu dance sob a tempestade, que eu corra pelas ravinas, que não autoriza que eu dê mais que um passo para cada lado.
A claridade que vem da geladeira finca sua luz fria na minha retina e, para que essa luz penetre meus tímpanos, inclino a cabeça até o ladrilho, ali me abandono, encolhido, e quase penso que escuto a chuva no jardim de inverno.
Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental.
Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno.
Ela me leva para a cama, sem saber que está molhada de mim, e sonha que é uma tempestade que rompe as maciças paredes do cubículo onde moro aqui no Graben.
Paulo Autran (1922-2007)
Escutar Paulo Autran recitando "Resíduo", de Carlos Drummond de Andrade
É sempre o mesmo fingimento, o igual cadáver adiado, a sempre mente dispersa. Aqui estou, ressuscitado, Eu – Schopenhauer – e, num dos quartos do Paraíso onde respiro, acho um consolo na cannabis que acendi.
A piscina mostra seu abismo azul-claro, – um abismo, um belo abismo.
Nela mergulho mágoas, vísceras grudentas. Sem a vertigem eu seria um corvo a crocitar em ramagens e adágios. Hilda Hilst, quem diria, mora no quarto contíguo ao meu e me leva a toda parte, dormimos naquele banco do jardim, encharcados d’água desse chafariz fingido; sim, fingido, posto que aqui no Paraíso não há nada, apenas a mente quântica existe aqui e, agora, a tudo inventa, sem nuvens e ressentimentos. Pois este "agora" é o motivo particular e a sina. Se eu nunca mais morrer, como presumo, sobreviverei no nome desse ventilador que esparze folhas de calêndulas pelas peles cântaras. Sonhas, não? Hilda Hilst faz um gesto negativo:
– Agora, aqui no Paraíso, é que não sonho mais, meu querido. De manhã, é o próprio Deus que me acorda e o Pegasus trepa comigo na cama de chuva, onde trocamos carícias e fumamos a luz invencível.
Para sempre ressuscitado, Eu – Schopenhauer – aprendi que o sol é a sombra do sol e me recuso a molhar o gatos durante a chuva. Tenho outro ar agora: os olhos metidos para dentro vêem pensar o cérebro. Recito um poema para o Deus:
O SOL ESCURO
O homem do calabouço passeia sob o sol escuro:
--- Se o sol é a sombra de Buddha, quem é Buddha, então?
Buddha vaticina: --- Hoje mesmo os teus olhos iluminarão o sol.
O homem do calabouço argumenta: --- Altamente concentrado no unilateral, jamais serei claro.
Buddha diz ao homem do calabouço: --- Em você é real e claro o que é invisível, falante de uma fala que é da gramática só uma lasca.