segunda-feira, 4 de maio de 2009

Luc Janssens, 2006

Monteverdi e a praia de Pinheiros-bravos, que é um declive arenoso e confina com os ventos e a neblina vivificante. A língua natural e o ato de respirar: um só enigma. Para proteger Lucana do sol e da chuva, K. construiu uma espécie de caramanchão e, à sombra dele, colocou um banco de pedra e um frasco d’água. Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos, procurando remanso, coqueiro e céu, mas não encontra. O espírito impuro, antes de ir ao deserto, decide verificar se a sombra do caramanchão é mesmo de fresca ramagem. Lucana sopra na pele do espírito impuro, até que a pele seca se torne avena suave que daqui se escuta. Pensa Lucana: “Devo ancorar minha barca perto do caramanchão de rosas brancas e longe do sabre no mais fundo. Se os fariseus, ressoantes e vazios como tambores, ousarem insinuar que aqui não devo ancorar minha barca, logo uma irada torrente me encharca cabelos e pulmões e as árvores altas vergam até às pedras para que sumam os fariseus nas chamas de uma sonata de Monteverdi”. Pequena descrição dos talha-mares, de coloração escura, na praia de Pinheiros-bravos: se próximos às águas da neblina, quase é certo que, sendo talha-mares, nunca leram livros nem ajoelharam diante do banco de pedra e do frasco d’água, mas, sabe-se que eles têm o hábito de voar junto da água, alimentando-se de tainhas e plantas subaquáticas. Sugeri à Lucana que fôssemos às termas marinhas. Ela concordou e rezou o preceito de Buddah: “Antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa”. Quando chegamos às termas, ciprestes vieram ao nosso silêncio. A única Lucana que ali estava ciciava no tímpano do salmão transparente – salmão no leito líqüido da onda. Em torno havia um mar cativo de espumas. Naquilo pedras o mar molhava: um grosso aguar. A náutica Lucana velava o incensário de ouro e fogo, abandonava a língua no apuro do açude. O gongo a serenava. Antes que o primeiro salmão se molhasse, o salmão já estava molhado. Ao mesmo tempo em que a neblina sumia por entre as árvores, eu e Lucana, afundados no vapor oloroso das termas marinhas, éramos duas cinzas frias remoçando n’água.

Anônimo do século 18


Arte Japonesa: carpa.

Ver o peixe George,
de Audrey Hepburn,
no filme "Sabrina", 1954.



http://www.youtube.com/watch?v=wjcPN3caOsk&feature=related

Henry Fox Talbot, 1870

No capítulo 7 do Horto de Leviathan, de autoria daquele mesmo anônimo da filosofia escolástica, uma nota aclara o único argumento convincente a favor da ressurreição do corpo. Eis a nota: “Quem construir uma pia baptismal no mantra, coloca plantas vivas na água, desprende-se da concretude e retorna ao princípio, ou àquilo ‘anterior ao princípio’, quando ‘antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa’”. Cansada da fraqueza extrema, que sempre a enlanguesce nas primeiras horas da manhã, Lucana decide urinar no antifonário, após ter lido pela quinquagésima vez o insosso fólio do Glossarium latinatis. Que ela urine na própria saia de organza ou nas pedras do deserto, mas nunca no antifonário, porque nele está escrito, com letras de missal, que o cinismo é casca frágil e só nos salva da extinção a pureza das linhas de um Modigliani ou essas estruturas coruscantes de reflexões sardônicas. Lucana, no ensombrado quarto de dormir, ao cerrar os olhos profundos, observa miniaturas de afrescos gregos que parecem se guardar de um contágio indigno. Para não acordar Lucana, saio pisando musgo. Esqueci de regar as plantas no casarão. Antes de ir, ainda espio mais uma vez, à sombra do jarro de rosas, um breve orvalho na nudez daquela que dorme – de acordo com a descrição de Lezama Lima –, feito uma “pequena caixa de cristal, cheia de alfinetes e agulhas, e que, mesmo situada na última peça da casa, ainda sente quando o bonde passa”.

Susan Burnstime, sem data

Ô ressurreição, dê água a meus ossos, me livre da aboiz de achar que eu sei tudo. Sou bossa de corisco, silêncio de adro, diamante que não, que sim. Ô ressurreição, dê arejos às trevas, me livre da falta de doçura, do vício de não escutar as trepadeiras trêmulas no aljibe. Tudo volta ao silêncio. Nunca estive entre as folhas da abanga. Nunca me chamaram de Beechmann. Ô ressurreição, que o que agora vislumbro não se perca, não se perca. E alguma coisa disso tudo seja meu: o linho da mortalha dos anjos, a xícara branca, o sorriso dos Reis, os passos no desconhecido, as delícias, os cinamomos, os vasos cilíndricos de barro, e mais tudo o que, por distraído, esqueci.

Walter Vasconcelos

Todo dia é dia de poesia

Oguz Gurel

Spacca

Rebecca Horn

a intervalos

como se nascido do vento

o velho moinho

remói o vazio

ponho os pés ali

não no vazio

mas no tapete persa do vento

e

se flutuo

no vento persa

do tapete

não morro

antes evaporo

pra chover depois

em secas folhas de árvores

enquanto chovo

Shiva desperta

e repete pra que eu ouça:

toda palavra é um veneno

e o poema

antídoto

extraído da própria palavra