Adaga do califa Omar.
sábado, 24 de janeiro de 2009
MEDITAÇÃO DO CALIFA OMAR
SOBRE ALEXANDRIA (640 d.C.)
Com seu periscópio de concha o califa Omar perscruta a baía de las Gavenas, em Alexandria. O caminho do poeta não é o do silêncio, mas o da luxúria.
As ondas nunca ociosas na baía de las Gavenas.
O califa Omar, nesse ano de 640 d.C., escreve numa das paredes do Palácio Real que o princípio de toda poesia é suprimir masmorras, leis da razão: na pedra gasta infiltrar a phantasia: e nos conduzir ao caos originário.
Sem Céphas, 1900
A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.
Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava – o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais – e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!
O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.
Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir?
A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem a essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer.
Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.
O Inventalínguas
Roland Barthes, numa das suas magistrais aulas (essa, especificamente, chamou de Leçon), comenta sobre a língua como prisão. Ele diz que ao nascermos as coisas já tem nomes. Não somos nós, neófitos na língua, que batizamos os objetos ou os sentimentos. Objetos talvez tenham sido mais fáceis de nomear. Mas sentimentos? Estes são tão difíceis que até hoje muita gente discute suas semânticas. São capazes de dizer: “amor pra mim é isso, paixão pra mim é aquilo”. Não há uma ideia precisa do que chamamos o que sentimos, ao contrário das coisas. Mesa é mesa, cadeira é cadeira, estão lá, associados, unha e carne. Se alguém disse: coloque a maçã sobre a mesa, pouca dúvida haverá sobre a ordem. Porém, se disser eu amo fulana” será possível ser coberto de questões do tipo: “mas é amor de verdade?”, “que tipo de amor”?
Em algum instante do mundo, como no próprio primeiro instante, alguém teve a felicidade de dar nome às coisas. O sujeito estava lá, olhando pro céu e pensou: céu. Dali por diante, todos sabem que céu é aquilo. O único lugar, segundo Barthes, onde é possível trapacear essa prisão, é na literatura. Podemos chamar mesa de “plunt” e o leitor que goste ou não. Literatura não é agrado, a literatura não existe para explicar, a literatura não é jornalismo nem tese, nem ensaio. A literatura é lugar onde podemos mandar às favas os acordos ortográficos feitos nos gabinetes. Se o povo é o inventalíngua, como disse o poeta Maiakovski, por que não ouviram a voz das ruas para dar sentido à nova ortografia? Se apenas 11% dos brasileiros sabem ler e compreender o que estão lendo, e ainda assim numa confusão ortográfica que vai do poético ao risível, o que será agora? Levamos anos brigando com os hífens, os acentos, as crases, e agora teremos que reaprender a língua?
Melhor é voltar à literatura, fazer como João Ubaldo e Saramago que se julgaram velhos para reaprender a escrever. Do mesmo modo, na literatura, trapacearei a língua e continuarei a colocar as tremas e o acento na palavra ideia. Infeliz do sujeito que ideia tirou-lhe o traço que dá plasticidade a uma coisa tão sem valor ultimamente: as ideias. Portugueses, brasileiros, chineses, caboverdianos, timorenses, moçambicanos, angolanos continuarão com seus modos de falar, por sorte, porque se alguma coisa ainda me comove nesse mundo é justamente a diversidade.
Fábio Brüggemann