segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Quino

Manuel Álvarez Bravo, 1920

Eu escrevo o dia inteiro, cá fora, junto ao pequeno pavilhão de estilo oriental e sob a árvore daquela frase; árvore que finca raízes no calcário friável composto de sílica e argila. Não esfrego serpente nem ostra na cara. Não falo grego e siríaco, mas o silêncio escuta o movimento hierático de minha clara língua. Eu, K., a caminho da ilha de Creta, extravio luz no vão de cercas. A caminho da nuvem, eu, morador de Villa da Concha, me’n vaig arran de l’aigua i recullo – vou rente à água e recolho – grãos de música para os dias frios e desesperados. Nos cactos, nos vinhedos e nas paredes pintadas a cal perpassam manadas de sombra. Por aqui o olho das velhas loucas até parece um lugar de siri. Escrevo: “O Jarro Sereno --- no jardim de Quf --- sonha que não cessam os oráculos. E o que poderiam revelar os oráculos?” O Deus tenta uma resposta: “Os oráculos revelam que é necessário esgrimir contra a monotonia para que o texto do Jarro Sereno – lumen naturae – nos alcance”. Eu, K., no horto, certo dia, mergulhei a cabeça oca na pipa d’água --- ia morrer afogado, o Jarro Sereno me puxou da pipa d’água”. Escrevo, depois do susto, algumas letras nupciais: “Lucana, o que eu desejo pra ti é que chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase. Chovam brasas no teu gelo e que os esguichos do unicórnio ágüem os cajueiros do quintal, ágüem o meu amor e a tua concha – que a água-perfumada lave teus ossos até que reste apenas essa caixinha de música e a música é tudo, bem sabes. De branca espuma coroada a onda, de barcas o mar de sal grosso, de Vazio coroado o ar e de água pura a fronte, enquanto a brisa zaranza da turmalina ao matadouro, das altas árvores à torre da pequena igreja do Carmo, dos cílios aos capinzais, a brisa por tudo passa e serenamente entra pela janela e no quarto se acalma. E que te cale a chuva no Jardim de Pedra. Durma até, durma Lucana, que eu te ressuscito com carícias na nuca. E, ao adormeceres comigo, sem que me toques, possa a árvore branca das cantatas de Bach oxigenar a tua pura fonte no pedrento, meu amor, meu labirinto de relva”. Escuto um pouco o riscado vinil de Chet Baker. Leio, antes da pequena refeição noturna, este versículo de Manoel de Barros: “Eu ouço a fonte dos tontos. Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele”. Ontem sonhei que eu caía na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer para escutar mel nas ostras, para escutar a fonte dos tontos, para escutar o sumo solar. Consultava o relógio da corrente: quadrado branco de fino vidro. Na cisterna havia orgias de latim e eu era virgem de mulheres. Meus olhos cobertos por vidros fumados, de aros muito grossos e talvez prateados. A cisterna mormacenta sufocava, enquanto eu rememorava os vaticínios daquela noite de runas: eu só poderia clarear o inverno sombrio, se eu mesmo fosse o inverno sombrio ou esse trecho de pedra fria que me serve de cama. O mal há, é sombra que enfraquece. O real é uma alta árvore no ouvido, o “em-constelação”. Folheio Eça: “Onde não há água, não está Deus. Chão de greda é condado do demônio”. O baal zebuh não há. Existe é o céu humano. Um cristal ou uma enguia me muda.

Frederick H. Evans, 1903

A igreja dos Lavados


A fonte era atrás da Igreja dos Lavados – e fiquei horas num êxtase, língua à brasa de coxas, andando, no pensamento, em torno do poço com erva da tempestade no céu da boca. Bebi aguardente, benzi pedras e gatos.

Vi, pela primeira vez, o aspecto interior da fonte de água mineral que me envolve e me incita ao linho. Sonhei, chuva a chuva, o abismo em que me precipitei nulo. Escutei em meus tímpanos o bosque de uma voz que desfiava uma barca na correnteza. Retirei da sombra a meu Lautréamont íntimo, a meu ser colossal, e tirei-me a ferros das entranhas de mim mesmo.

Devaneio entre o bairro de água Branca e o bairro dos Paulas.

Gozo antecipadamente o prazer de ir tocar as coxas de uma das três mulheres Araxá. Uma hora estou aqui deitado nas folhas das folhas de relva, outra hora estou lá, e pratico ablução com areia embaixo de um baobá, vendo os ângulos algumas vezes cáusticos do absurdum – bate o fino tambor: absurdum, absurdum, absurdum. Tornamo-nos cadáveres, ainda que falsos, até atingirmos aquele ponto da ilusão em que a própria ilusão se destroça, onde já não distingüimos quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Porque, de resto, o que fingimos é isto, fingimos ser cadáveres e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com essa vidraça – ou a vida –, é estarmos em desacordo com nós próprios e com esses talhos fundos sobre a fauce, como feitos por dentes de garfo. O absurdo é o divino e eu passo por entre lianas, alcanço o retábulo de pedra e nele adormeço. Acordo para estabelecer a seguinte teoria: o mar assina oráculo na carapaça da lagosta, depois age contra ela, para justificar o quanto é oco esse oráculo e ocas as nossas ações e as teorias que as vivificam. Talhar uma tainha na nuvem, e logo em seguida agir contrariamente ao mar e seguir por essas espumas. Ter, nos gestos todos, jorro de água e, no pensamento, uma loja de cristais; gestos aquáticos e o inferno é esse gato persa que penetra surdamente na loja de cristais e os cristais – tensos todos – confidenciam que nem somos gato persa nem pretendemos ser nuvens. Adquirir um livro para ler nas páginas desertas a pétala, o salmão e, se pétala de salmão é escama, também é selo de poesia. Ir a concertos para não escutar os cellos suntuosos de Brahms nem para ver o Mister Wong que sempre lá está (no auditório de um concerto, todo calvo é sempre o Mister Wong); dar longos passeios por cima das ondas, andar no bosque vazio por estar farto de andar no bosque vazio e ir passar domingos com a cabeça embaixo do travesseiro só porque ali o céu não nos aborrece. Agora, que me oprime a roda-de-ferro na fronte, aquela angústia antiga me conta que chovem fios de mel na carpa, por vezes bebo o andamento delas num aquário e respiro deitado numa das longas folhas da bananeira. E como, ao sair eu, o vento verificasse que a garrafa de vinho ficou pela metade, o vento bateu com a cortina na garrafa, aliviou-a de repente de seu líqüido e o vento se afastou.

Roger Fenton, 1852

No verão amadurecem

os chapéus



BEIRA

Ballot acende mares à ponta dos pés

vai enfiar canoas no sonho que afundou



SAFARI

Levava espelho quadrado
chamava gaiola

capturar paisagem e moça




VENTO

Se as saias erguidas
balançam aos pés do mar

o vento
respira
dentro delas




A BELA DA TARDE

Fui atravessar a tarde

os policiais me bateram riram
cuspiram
condenaram meus olhos a duzentos anos
só porque fui ver

a bela
da
tarde




JOGO DE FIAR

Só morria se o cavalo passasse
ao longo da janela

passava nunca

um dia
o amazonenese desenhou o trem
na parede da casa
foi
ladrilho no olho
para Cusco




CONDE

Conde de Pancarté tem elétrica pantera
flameando entre pernas suadinhas

as que morrerão, as pernas




OSTRA

Nunca sei fazer milagres
soubesse
dava festa
acendia vespas de absoluto vôo
assim como passam os dias
te passava na boca
caju pérola deliciazinha ê
drumia si si sacratim xanxá
embolado em tuas águas




BALIZA

Dois coqueiros
o fio d' luz cruza seus topos

a lua é gol




NO VERÃO AMADURECEM OS CHAPÉUS

Voava cidade foi cair nos cabelos
da castelã calçava luar

dentro do chapéu não havia fundo
podia-se tocar o fim do mundo

Lindalva viu
olhos berloques
que o fim do mundo
é como fim de beijo

semana vem que virá outro




OLHEIRAS

Se vou lento é que engoli tartarugas
passei lenço roxo aos olhos
meu automóvel ficou parado
espera tuas louças




AZULEJO

Ladrilho suja pés de Maria Catorze
que leva resedá a uns deuses no espelho

seus olhos




CRUSOÉ

Órion é milenária

cada um está no seu pó




GUEPARDO

Guepardo vivia (o que o tornava infinito)
vazio a dentro dum banheiro da rua Gonçalves

não consultava relógio
ou respirava estrelas

na terceira poltrona Luzia escutava foxtrote
as veias um pouco na luz
meias nuas em cadeiras vimes

sonhava dentes de guepardo




HISTORIETA

Roubaram muletas do perneta
rezou a Nossa Senhora da Luz
não devolveram

sentado na calçada sorriu

mulheres vieram beijar
o seu único pé





POÇAS

O corcunda de Notre Dame
enquanto o mundo se consumia

pintava em poças magras
a instantânea lua

só porque amava os três tons do azul





PRENOM CARMEM

Passa trem na tela
gaivotas
Beethoven hipnotiza águas
o cego ao entrar faz barulho tropeça
à sombra de um lírio

moça diz que foi nada

o cinema é bom lugar
pra se dizer adeus





VESTIDO

Vestido clareia lua cheia de bolinhas

uma delas é o mundo
assanha os gatos




QUINTAL

Beijar orelha no alto do abacateiro

a coxa dela dói nas minhas linhas





QUEDA

Caiu do alto jacarandá
antes de beijar o chão deu abraços
fez lição de casa andou fumou foi
ao cinema teve um
cachorro
amara Leila Maristela Rita
escreveu esse poema e não morreu

o páraquedas abriu





BIOMBO

Mão de Nadja Maran viraram peixes na hora do rush,
as mãos. E os que
olhassem no fundo nos olhos deles ficavam
nus
nudez tão funda
que nem
o
biombo
os esconderia




A FLOR DE CAQUI DA NUDEZ

Passo dedos em brincos passo
a mão
na flor de caqui da nudez
vês?
abandono um vaso quebrado a teus pés


QUANDO VOLTARAM

Ônibus amarelo furou pneu
ficamos ali sentados
eu e meu amor

ouvindo as conchas que catamos




ROMAN À CLÉ

O faquir acendia postes postes
em cada pendurava o retrato da mulher de sua vida
que lá vem onceira macieza a danada vem
bêbeda
finca ao lado das fotos
a foto do faquir




Todos os poemas acima
foram escritos por Fernando José Karl.