segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
A igreja dos Lavados
A fonte era atrás da Igreja dos Lavados – e fiquei horas num êxtase, língua à brasa de coxas, andando, no pensamento, em torno do poço com erva da tempestade no céu da boca. Bebi aguardente, benzi pedras e gatos.
Vi, pela primeira vez, o aspecto interior da fonte de água mineral que me envolve e me incita ao linho. Sonhei, chuva a chuva, o abismo em que me precipitei nulo. Escutei em meus tímpanos o bosque de uma voz que desfiava uma barca na correnteza. Retirei da sombra a meu Lautréamont íntimo, a meu ser colossal, e tirei-me a ferros das entranhas de mim mesmo.
Devaneio entre o bairro de água Branca e o bairro dos Paulas.
Gozo antecipadamente o prazer de ir tocar as coxas de uma das três mulheres Araxá. Uma hora estou aqui deitado nas folhas das folhas de relva, outra hora estou lá, e pratico ablução com areia embaixo de um baobá, vendo os ângulos algumas vezes cáusticos do absurdum – bate o fino tambor: absurdum, absurdum, absurdum. Tornamo-nos cadáveres, ainda que falsos, até atingirmos aquele ponto da ilusão em que a própria ilusão se destroça, onde já não distingüimos quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Porque, de resto, o que fingimos é isto, fingimos ser cadáveres e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com essa vidraça – ou a vida –, é estarmos em desacordo com nós próprios e com esses talhos fundos sobre a fauce, como feitos por dentes de garfo. O absurdo é o divino e eu passo por entre lianas, alcanço o retábulo de pedra e nele adormeço. Acordo para estabelecer a seguinte teoria: o mar assina oráculo na carapaça da lagosta, depois age contra ela, para justificar o quanto é oco esse oráculo e ocas as nossas ações e as teorias que as vivificam. Talhar uma tainha na nuvem, e logo em seguida agir contrariamente ao mar e seguir por essas espumas. Ter, nos gestos todos, jorro de água e, no pensamento, uma loja de cristais; gestos aquáticos e o inferno é esse gato persa que penetra surdamente na loja de cristais e os cristais – tensos todos – confidenciam que nem somos gato persa nem pretendemos ser nuvens. Adquirir um livro para ler nas páginas desertas a pétala, o salmão e, se pétala de salmão é escama, também é selo de poesia. Ir a concertos para não escutar os cellos suntuosos de Brahms nem para ver o Mister Wong que sempre lá está (no auditório de um concerto, todo calvo é sempre o Mister Wong); dar longos passeios por cima das ondas, andar no bosque vazio por estar farto de andar no bosque vazio e ir passar domingos com a cabeça embaixo do travesseiro só porque ali o céu não nos aborrece. Agora, que me oprime a roda-de-ferro na fronte, aquela angústia antiga me conta que chovem fios de mel na carpa, por vezes bebo o andamento delas num aquário e respiro deitado numa das longas folhas da bananeira. E como, ao sair eu, o vento verificasse que a garrafa de vinho ficou pela metade, o vento bateu com a cortina na garrafa, aliviou-a de repente de seu líqüido e o vento se afastou.
Ballot acende mares à ponta dos pés
vai enfiar canoas no sonho que afundou
Levava espelho quadrado
chamava gaiola
capturar paisagem e moça
Se as saias erguidas
balançam aos pés do mar
o vento
respira
dentro delas
Fui atravessar a tarde
os policiais me bateram riram
cuspiram
condenaram meus olhos a duzentos anos
só porque fui ver
a bela
da
tarde
Só morria se o cavalo passasse
ao longo da janela
passava nunca
um dia
o amazonenese desenhou o trem
na parede da casa
foi
ladrilho no olho
para Cusco
Conde de Pancarté tem elétrica pantera
flameando entre pernas suadinhas
as que morrerão, as pernas
Nunca sei fazer milagres
soubesse
dava festa
acendia vespas de absoluto vôo
assim como passam os dias
te passava na boca
caju pérola deliciazinha ê
drumia si si sacratim xanxá
embolado em tuas águas
Dois coqueiros
o fio d' luz cruza seus topos
a lua é gol
Voava cidade foi cair nos cabelos
da castelã calçava luar
dentro do chapéu não havia fundo
podia-se tocar o fim do mundo
Lindalva viu
olhos berloques
que o fim do mundo
é como fim de beijo
semana vem que virá outro
Se vou lento é que engoli tartarugas
passei lenço roxo aos olhos
meu automóvel ficou parado
espera tuas louças
Ladrilho suja pés de Maria Catorze
que leva resedá a uns deuses no espelho
seus olhos
Órion é milenária
cada um está no seu pó
Guepardo vivia (o que o tornava infinito)
vazio a dentro dum banheiro da rua Gonçalves
não consultava relógio
ou respirava estrelas
na terceira poltrona Luzia escutava foxtrote
as veias um pouco na luz
meias nuas em cadeiras vimes
sonhava dentes de guepardo
Roubaram muletas do perneta
rezou a Nossa Senhora da Luz
não devolveram
sentado na calçada sorriu
mulheres vieram beijar
o seu único pé
O corcunda de Notre Dame
enquanto o mundo se consumia
pintava em poças magras
a instantânea lua
só porque amava os três tons do azul
Passa trem na tela
gaivotas
Beethoven hipnotiza águas
o cego ao entrar faz barulho tropeça
à sombra de um lírio
moça diz que foi nada
o cinema é bom lugar
pra se dizer adeus
Vestido clareia lua cheia de bolinhas
uma delas é o mundo
assanha os gatos
Beijar orelha no alto do abacateiro
a coxa dela dói nas minhas linhas
Caiu do alto jacarandá
antes de beijar o chão deu abraços
fez lição de casa andou fumou foi
ao cinema teve um
cachorro
amara Leila Maristela Rita
escreveu esse poema e não morreu
o páraquedas abriu
Mão de Nadja Maran viraram peixes na hora do rush,
as mãos. E os que
olhassem no fundo nos olhos deles ficavam
nus
nudez tão funda
que nem
o
biombo
os esconderia
Passo dedos em brincos passo
a mão
na flor de caqui da nudez
vês?
abandono um vaso quebrado a teus pés
QUANDO VOLTARAM
Ônibus amarelo furou pneu
ficamos ali sentados
eu e meu amor
ouvindo as conchas que catamos
O faquir acendia postes postes
em cada pendurava o retrato da mulher de sua vida
que lá vem onceira macieza a danada vem
bêbeda
finca ao lado das fotos
a foto do faquir
foram escritos por Fernando José Karl.