quarta-feira, 3 de junho de 2009

André Kertész, 1915

Absorta em si mesma, intacta planta viva n’água, Dora Maar percorre o sonho mau dos mortos e os puxa, com os cabelos, por cima de ondas grossas de sal. Uma deusa Dora Maar? Apaguem seu nome, a pele, a respiração e dela só pode restar um mantra consciente da realidade. Se deseja grafismos de oleandros e sargaços, também deseja a primeira respiração da sereia branca e aguarda embaixo do guarda-sol o sopro do paraíso. Dora Maar duramente verte algumas palavras, para sempre tecendo o corpo com asas acima do areal, e dá rasantes pelas quinas dos terraços suspensos de Málaga. Dora Maar aceita que Picasso a proteja, na praia, com aquele guarda-sol. Com o desconcerto habitual, Dora Maar vê sua cabeça ser arrancada dos ombros pelo vento e passar rente à torre da igreja de San Isidro, por baixo do céu a cabeça de Dora Maar e as nuvens entre as nuvens.

Aqui, na paia de Málaga, em estado de óbvia distração, Picasso contempla puramente os objetos: samambaias, conchas, coqueiros. Os dois entram no casarão plantado rente às águas. Ele passa a língua no salitre perfumado do pequeno bosque dela. Dora Maar abandona-se num dos recantos do hall desta edificação à beira-mar e sabe que, soprada além das vãs águas molhadas, há ondas, ondas, ondas.

Na cozinha ou deitada no quarto, recolhida de uma pronúncia de brisa inacabada, Dora Maar espia pela grande janela a luz que irradia sons de ouro – enquanto jasmineiros fervem no quintal – a luz adormece para sempre no ondular vazio de longas folhas das bananeiras.

No piso de uma das salas do casarão, caído um livro. À página 61, a linha de frase: “Encosto o raio no tímpano e o cântico opressivo se desvanece”.

Na piscina, na noite, ou agora singrando com a barca o rio azul de Sabalquivir, Dora Maar e Picasso já sabem que a pedra é uma fonte de água viva e que a siriringa é água tremente pela passagem dos peixes. A tempestade fincada no ponto de orvalho, não fere o orvalho. Nem chifres de rinoceronte machucam esse ponto aquático nem o mal fere a chama de Dora Maar sentada à escrivaninha. Preguiçosa e indiferente, ela cobre o rosto com véu de estrelas e, com ele, adoça a língua e o chá.

René Le Begue, 1897

O corretor de imóveis me diz que a piscina dessa casa foi construída a pedido de Gôngora no século 18 por isso mergulho nas águas limosas da piscina de Gôngora algumas letras d’água passam por dentro de ti señora doña segoviana cuyos ojos están llorando nado de costas nas águas esverdeadas da piscina de Gôngora al sol ninfa mía de flores despojando el verde llano ondeábale el viento mergulho mais um pouco para tocar os azulejos lá embaixo onde a piscina é claro honor del líquido elemento toco os azulejos dulce arroyuelo entre la yerba se chovesse sobre a piscina de Gôngora eu ficaria sob as águas durante mil anos los ojos llueven como se nada houvesse ocorrido estas plantas a Alcides consagradas algumas reunidas em torno da piscina a música de aquél ángel fieramente humano retorno por um instante à superfície pra escutar onde se afoga o sonho a respiração védica protege a sombra mergulho de novo na soturna piscina de Gôngora para recitar essa fonte que aguarda ser pronunciada enquanto um relâmpago fende o ar devo sair da piscina tomar uma ducha depois adormecer para que a alma saiba que o que está besando unas manos cristalinas está soñando en aquellas perlas finas

André Kertész, 1974

Caída no lajedo da Casa do Sol, a velha senhora ainda pronuncia a palavra indiscernível: Qadós. Um pequeno aguar de onda marinha umedece o rosto de Hilda Hilst em decúbito dorsal no lajedo junto à árvore de tronco duro. Envolta em densos eflúvios de água de colônia, ela agoniza e não há cítara nem pedra que a ressuscite. Com arraia fincada em suas costas, com olho mítico tatuado acima do púbis, Hilda espanca com chapéus de chuva as janelas. Polidamente, alguém lhe serve marisco; é hum Anjo da Casa da agoa. Traz hua fatal cabeleira de limos, chêa de caracois, de michilhoens, ou caramujos, à cinta o Anjo traz um verdugo de çafio em talim de pelles de enguias. A diva chêa de céos interpreta Elza, na ópera Lohengrin, de Wagner. Os degraus estão já brancos com o orvalho, e é tão cedo que a sombra dos sicômoros entanca próxima da cortina de cristal para que eu contemple o vento nas ramagens. No altar as lágrimas da deusa Orín e cada lágrima cintila ou a deusa borda lágrimas na tempestade porque não voltarás? O marasmo dessa noite, através das cortinas de contas de cristal, olha para a ode que grafito sobre o dorso melancólico do peixe persa.


Syracuse.

Escutar Syracuse,

com Yves Montand.

http://www.youtube.com/watch?v=0ZNnJvVJNmU&feature=related