sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Les Krims, sem data


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Karl Struss, 1915


Meus olhos verão
o
paraíso,
sim,
mas serão olhos apodrecidos.
Ver 7 artistas plásticos
da Galeria Saatchi

Ryna Ko


Ronald John Hodgson


Paola Mazzola


Pann Annoussis


Linda Britt


Liesl Victor


Leo De Vries


Frederic Ohringer, sem data


A DEFORMAÇÃO ORGANIZADA
DA LÍNGUA COMUM
PELA LÍNGUA POÉTICA

Um riacho de serpentes no cérebro, um vaso de porcelana com verbenas. O estranhamento se há cascalho: aqui as palavras têm plantas. Fisgo do cristal o inaudível, alago a música da mente e, à sombra do salmão ciumento, me recolho. Imagino que sou neblina de Issa, neblina vivificante, isca sou de instrumentos arcaicos que crescem em plantações protegidas por cercas de bambu:
tarolas,
ravanastrões,
sambucas,
arquialaúdes,
tchés,
turlurettes,
magrephas,
pandoras,
hidraules.
Ver 7 feras do humor

Wang Shanjia

Pedro Molina

Nezar Othamn

Kuczynski

Hule Habusic

Alessandro Gatto

Andrey Feldshteyn

Ver as mais estranhas criaturas
neste bestiário inacreditável.
Prepare-se, depois de ver
estes animais do outro mundo,
você nunca mais será o mesmo.

http://www.youtube.com/watch?v=ZrvPuxb5MB0

Andrej Glusgold, sem data

Um pedaço azul de sabonete caído no ladrilho. O clarão súbito e breve de um relâmpago de Heráclito conduz as coisas todas ao fluxus. Eu traio Lucana com essa morena que encontrei na rua das Larissas Descalças. Estamos no Motel Agreste. Daqui posso ver a Casa de Água pela janela que, parcialmente fechada, deixa penetrar o ar, mas torna sombrio o ambiente. Se Lucana me telefonasse, eu lhe diria que mergulhava no mar, quando, na verdade, o que eu mergulhava eram os dedos entre as coxas dessa morena de olhos azuis, cabelos pretos. Os ramos afundados ungidos de Vazio, para não esfolar a pele quando o andamento de águas um contra o outro esfregamos. Daí é o instante em que as águas virgens jazem ao lado da friez de corais ouro-alaranjados, águas virgens estiradas no silêncio. Claro que Lucana nem desconfia que estou aqui nesse motel e acariciando esse paraíso de olhos azuis, cabelos pretos. A morena é uma dessas colhedeiras de mariscos e sopra de minha alma a ferrugem e o remorso. Sobranceira, ela rapta-me da ante-sala da loucura, e é por isso que, com haste de bambu, tatuo na minha pele a silhueta que é divina da colhedeira de mariscos. Ela esquece ervas-de-cheiro entre meus pés, nas cortinas e nos lençóis onde trançamos leves desesperos. Coroada quer coroar o que no silêncio é gramática da fonte. A de olhos azuis, cabelos pretos, é um lagar onde não há uvas cáusticas. O que eu sei, dela, é a jângal, e aqueles olhos, com sede, como se vindos de um céu de safira oriental. Dançamos, num andamento vivo, a sardana com o tamboril e a flauta e, à sombra de grandes barcas, com os corpos nus passamos por sobre as algas, os náufragos, as florestas submarinas, os hortos subaquáticos, os bosques molhados. Fora do Motel Agreste, o mar adora o abandono de toalhas molhadas que jogamos no piso eu e a morena – duas águas que se encontram na madrugada: mesma estrela na proa e uns poucos cabelos na correnteza. A presença de Lucana na minha mente culpada – o cheiro dela, de sassafrás, que chega do extenso de cercanias em grossas ondas de luz salina, beatifica de longe, aclara os lençóis, os olhos azuis, cabelos pretos dessa morena e penetra, essa presença de Lucana, a minha cabeça cravada com os espinhos da culpa. Penso que eu não deveria ser como as virgens imprudentes e que devia andar sempre com uma caixa-de-fósforos no bolso ou ser como a nadadora que esquece nas águas formas exóticas de jarras. Um pedaço azul de sabonete e nunca mais vi sequer um resquício dos olhos azuis, cabelos pretos. Apenas restou, de nosso encontro, o que resta de tudo: a brisa, o incenso, o mar como uma louça que se quebra nas pedras.

Nicholas Hughes, sem data

A BANHISTA

A pálpebra da banhista
encostou na pele do jarro,
porque fazia 40 graus à sombra do cipreste.

O real, o um do jarro,
é antecedido pela palavra jarro,
pelo que em Deus já é jarro,
mesmo sem jarro ser ainda.

Enquanto jarro-coisa, o jarro é irreal,
e a pálpebra da banhista
continua encostada na pele do jarro.

Agora, para que respire,
o inexistente jarro-coisa
converte-se no uso do jarro-palavra,
onde a banhista encosta a pálpebra.

Autocaricatura de Drummond (1902-1987)
Escutar Drummond
na voz de Drummond

http://www.youtube.com/watch?v=CaexXJ6UFnw&feature=related

Beth Moon, sem data


Lucana
A nuvem arrepia-se de febre até às ondas da branca espuma. Lucana folheia o livro do místico Sri Aurobindo: “Não existe mortalidade. É somente o Imortal que pode morrer. O mortal não poderia nem nascer nem perecer”. Lucana agora anda, mergulha, vai ao fundo do mar – la lengua del alma es la pluma –, Lucana anda mais, singra o areal com os cabelos pensos e o pulmão opresso. Mergulha na vastidão molhada. Afunda: onde está o invólucro calcário de uma concha, está o fundo salgado e estranho do mar ondulando mar. Com as mãos consegue arrancar de cima de si as águas e, Lucana assim imersa no vento, já sabe que a língua é de água viva e que a maré vazante afasta o porco para longe daqui. A alma é fúria grande e sonorosa, a coar sombras da ânfora proibida. A mais funda sombra é o porco-demônio que pisca, nervoso, os olhos incrédulos, ri, treme-lhe a mão esquiva, o braço enlouquece, a perna adormece, o pé medita, o tronco dança maculelê, mexe-se na cadeira, levanta-se, senta na cadeira, pisca, cai-lhe o chapéu, tomba o maço de revistas “O Cruzeiro”, ergue o maço acima da cabeça, fala com a parede, com o gato d’água, discute com a sombra do próprio cabelo no lajedo, tenta torcer o pescoço de pedra e chora de rir até os dentes caírem no chão. O porco-demônio (daimónion) é escorregoso, respira cloacas e, claro, nunca é sereno. Tem vezes o daimónion pode regar anêmonas com a marca viva que é, em sua voz, o sobrenatural, ou pode fingir que é pároco da pequena igreja do Carmo. Durante a distribuição das hóstias, pára tudo, as hóstias esquecidas no altar e, com o gesto supremo de quem vai cometer uma barbárie, cata no bolso da batina um pente e passa em seus cabelos de bolha de sabão. Basta um leve toque da ponta do pente em qualquer parte da cabeça do pároco e – catapám – o pároco explode em plena igreja e só se podem ver os nacos dele sujando os fiéis. O deus e o porco-demônio: o punhal de prata na água do poço. O porco-demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Para se distrair, o porco-demônio vai ao hall do Restaurant Palace e, ali, entre plantas exóticas e lustres de cristal, saboreia minguados caranguejos. Contrariado, ele ironiza: “Sempre que provo estes caranguejos, evoco os lagos pitorescos da Suíça”. O garçom estranha: “Perdoe-me, senhor, mas na Suíça nunca houve caranguejos”. O porco-demônio acrescenta, apontando com absoluto desdém, o prato: “Aqui também não.”