quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela --- água de chafariz --- que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo em chamas. A lâmina da morte abrasa a iguana e a reduz a cinza. Imersa em profunda fonte fria, Lucana, na cama de chuva, os olhos macios e perdidos, escuta, com órbita teimosa de bicho calado, que, segundo Petrarca, “...de um polido e vivo gelo provém a chama que a calcina e a destrói e tanto as veias resseca e a alma esboroa...”, que, invisivelmente, ela se degela. Lucana, a senhora do gelo, desvela nos búzios que a existência do céu apenas demonstra que somos ossos, não existimos, e só o céu dura na pura claridade matinal.
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