sexta-feira, 9 de novembro de 2007




Agora vou lhes revelar o Mysterium: Eu, Rimsky-Korsakoff, sou Deus, sim, sou Deus, mas não perdi a simplicidade. Amo apenas uma das deusas: Lythia. Se sou o que sou – e sou Deus – devo tudo a ela. Um homem não vale nada se não pensa primeiro na mulher. Posso construir edificações de vento, esquecer um jasmim e um pão embaixo do travesseiro; posso, também, ser esta sombra no muro pintado a cal. Eu sou Deus – fogo e água ao mesmo tempo; eu sou o nó de céu coroado, e já fui pedra em Calcutá, musgo em Ulan Bator, jazz em New Orleans, fui para cama com a chuva e nasceu o silêncio. Tanto me feri nos fios cortantes da concha, que não basta que deusas de água me enlouqueçam de eu sonhá-las, mas a presença delas serve, de alguma maneira, para distrair a dor, enquanto flutuo nos cellos suntuosos de Brahms aqui nesse terraço do Hotel Sunset Boulevard, e, saibam: de Lythia ainda nem sombra. Esta é toda a vida de um Deus que, mesmo sendo Deus, tem de ficar esperando Lythia. Sendo o que sou – Deus – também respiro esta música renascentista que torna invisível as árvores e faz com que as ondas se destrocem nas pedras como louças. Confesso que, sendo Deus, também sou o silêncio e a neblina vivificante, guardo, no relicário – onde a alma é hóspede silenciosa – o fato de haver conhecido mulheres que morreram virgens sem nunca acenderem um fósforo. Mulheres virgens são grandes cipoais emaranhados a torrentes de cristal fluindo dentro de pensamentos velados. Cristalino, o vento não procura a verdade nem afasta as ilusões. O vento espera Lythia na rua da Pedra e, quando ela chega, lhe dá um banho de vento. Com meu desprezo habitual por tudo o que não posso ver, chamo o vento de aquele que dorme num canteiro de vermes e sequer é tocado pelos vermes. Estua no desconhecido o talismã sereneiro. Desce a luz nas imagens sonhadas de sereias visíveis, e sereias, para Fernando Pessoa, são as palavras, palavras que nunca me pesam ou em mim duram apenas o riscar de um fósforo: este que guardo no bolso. Desfio, na neblina, um roseiral na secura e adormeço se escuto o vendaval ao longe. Muitas vezes o meu desejo é simplesmente ser um filósofo com gatos brancos na neve – uma neve onde eu pudesse matar a sede.

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