
sexta-feira, 30 de novembro de 2007
Dá para o quintal de vento e de monturos
a respiração de Deus, mais conhecido
como “o mais frágil de todos”.
Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem.
– Confundiram tudo – diz Deus,
e do rio de seu coração entre neblinas
fogem acordes de violas à beira do abismo,
onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música.
Deus iça a pandorga e o fio que a iça
está encordoado de arco-íris sob a chuva.
O vento no quintal é a ressurreição.
Deus, quando vem o vento, ilumina-se
com as partículas cristalinas que o sol espalha
no coração da bolha de sabão – coração de Deus.
George Tice

Cartier Bresson

Flor Garduño

Man Ray

No ondas ni luciente cristal:
agua al fin dulcemente dura
Édouard Boubat

quinta-feira, 29 de novembro de 2007
Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra para não ter dúvidas da obediência dela.
Martinus, os moradores de tua cidade me chamam de Senhora mestra, não porque te obedeço, mas porque os curo.
Martinus, o único bem que você vai deixar é a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo.
E quando estiveres dentro do túmulo, redes de bardana serão armadas para agüentar o calor nas alcovas desmanteladas.
Betti Mautner

Herrenschmidt
Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, clavículas que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.
Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se o foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água é meu deus. Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para perguntar:
– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?
No locutório o único adorno: um crucifixo de prata. Atrás da cortina preta, a mulher descalça...
Édouard Boubat

Dae Woong Nam

nos arredores de Bremen
O vinil rodando na vitrola.
Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de longos cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:
– Neste momento – ela diz como quem se surpreende – a neve, olha a neve...
Tento conversar:
– Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos.
– Não, a neve, olha a neve...
Pois Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados das casas e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da ampla árvore nessa rua Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa com a pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva, escutar Chet Baker.
Ou talvez Doutscha só exista nessa narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.
Georgia O'Keeffe

DO JARDIM ARCAICO DE NAFZAUÍ
Entre Aldebarã e as rosas de maio
Wittgenstein passa a mão no vento
depois jorra cristalinos
em teus cabelos estende sobre cercas e arbustos
aldebarã
deitado na folha longa do coqueiro
Wittgenstein retalha o vento com a peixeira
olha para o solo crestado três metros o separam
das rosas de maio
se ele caísse da longa folha cairia nos braços do mar

PRIMEIRA DESCRIÇÃO
DO JARDIM ARCAICO DE NAFZAUÍ
O nascimento da potência do eu profundo
Longínquo – entre sóis emanados do absinto –
imprimiste trevo de quatro folhas
na guelra do tubarão
que no jardim perfumado da tarde ala-se
por causa da potência que lhe oferenda o trevo
ao paraíso imerso na imensa curva do vento
vento que paira vinte cedros
enverdecidos de eternidades
não de milagres
aqui as ondas altas jorram entre arrecifes
o tubarão se transparenta ao escutar
ave-do-paraíso nítida no alto coqueiral
onde pariste faíscas e lascas de palavras
pelo mar da garganta

ABRI-VOS, PORTAS DE OURO, ANTE MEUS AIS!
O que adorei até o osso, onde respira?
Ido, dissoluto, se estende ar suave
acima dos telhados da Casa de Água.
No Oldsmobile verde-claro da ilusão
passa Georgia O’Keeffe mariscando
portas d’ouro entre duas ondas do mar.
A çankha hindu afugenta demônios,
excita os deuses benévolos.
Toda devastação traz o germe de seu idílio.
O coroado nó de fogo e o jasmim
urdem o córrego nupcial.
Quassar a raiz das cactáceas no areento.
Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas,
a barca de Bach nascente.
terça-feira, 27 de novembro de 2007
Cartier Bresson

Kafka
Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental. Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno. Ela me leva para a cama, sem saber que está molhada de mim, e sonha que é uma tempestade que rompe as maciças paredes do cubículo onde moro aqui no Graben.