quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Manuel Álvarez Bravo, 1920



Eu escrevo o dia inteiro, cá fora, junto ao pequeno pavilhão de estilo oriental e sob a árvore daquela frase; árvore que finca raízes no calcário friável composto de sílica e argila. Não esfrego serpente nem ostra na cara. Não falo grego e siríaco, mas o silêncio escuta o movimento hierático de minha clara língua. Eu, K., a caminho da ilha de Creta, extravio luz no vão de cercas. A caminho da nuvem, eu, morador de Villa da Concha, me’n vaig arran de l’aigua i recullo – vou rente à água e recolho – grãos de música para os dias frios e desesperados. Nos cactos, nos vinhedos e nas paredes pintadas a cal perpassam manadas de sombra. Por aqui o olho das velhas loucas até parece um lugar de siri. Escrevo: “O Jarro Sereno --- no jardim de Quf --- sonha que não cessam os oráculos. E o que poderiam revelar os oráculos?” O Deus tenta uma resposta: “Os oráculos revelam que é necessário esgrimir contra a monotonia para que o texto do Jarro Sereno – lumen naturae – nos alcance”. Eu, K., no horto, certo dia, mergulhei a cabeça oca na pipa d’água --- ia morrer afogado, o Jarro Sereno me puxou da pipa d’água”. Escrevo, depois do susto, algumas letras nupciais: “Lucana, o que eu desejo pra ti é que chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase. Chovam brasas no teu gelo e que os esguichos do unicórnio ágüem os cajueiros do quintal, ágüem o meu amor e a tua concha – que a água-perfumada lave teus ossos até que reste apenas essa caixinha de música e a música é tudo, bem sabes. De branca espuma coroada a onda, de barcas o mar de sal grosso, de Vazio coroado o ar e de água pura a fronte, enquanto a brisa zaranza da turmalina ao matadouro, das altas árvores à torre da pequena igreja do Carmo, dos cílios aos capinzais, a brisa por tudo passa e serenamente entra pela janela e no quarto se acalma. E que te cale a chuva no Jardim de Pedra. Durma até, durma Lucana, que eu te ressuscito com carícias na nuca. E, ao adormeceres comigo, sem que me toques, possa a árvore branca das cantatas de Bach oxigenar a tua pura fonte no pedrento, meu amor, meu labirinto de relva”. Escuto um pouco o riscado vinil de Chet Baker. Leio, antes da pequena refeição noturna, este versículo de Manoel de Barros: “Eu ouço a fonte dos tontos. Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele”. Ontem sonhei que eu caía na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer para escutar mel nas ostras, para escutar a fonte dos tontos, para escutar o sumo solar. Consultava o relógio da corrente: quadrado branco de fino vidro. Na cisterna havia orgias de latim e eu era virgem de mulheres. Meus olhos cobertos por vidros fumados, de aros muito grossos e talvez prateados. A cisterna mormacenta sufocava, enquanto eu rememorava os vaticínios daquela noite de runas: eu só poderia clarear o inverno sombrio, se eu mesmo fosse o inverno sombrio ou esse trecho de pedra fria que me serve de cama. O mal há, é sombra que enfraquece. O real é uma alta árvore no ouvido, o “em-constelação”. Folheio Eça: “Onde não há água, não está Deus. Chão de greda é condado do demônio”. O baal zebuh não há. Existe é o céu humano. Um cristal ou uma enguia me muda.



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