Hilda Hilst (1930/2004):
o último sopro
Entrevista a Fernando José Karl
Hilda Hilst sempre encarnou, em sua escritura, a santa, a prostituta, o corifeu. Com mais de 40 títulos publicados e uma coleção de pelo menos oito dos mais importantes prêmios literários do país, HH só não se conformava com uma coisa: a falta de leitores para seus livros. Apelidada de “esfinge da literatura brasileira”, Hilda criou uma outra língua portuguesa, mais densa e metafísica que a praticada cotidianamente.
Ao fácil prazer do texto sempre preferiu a assepsia, os desafios, os contrastes entre a miséria humana e o não-dito. Poucos críticos se extasiaram com os segredos da palavra de HH, dos quais se destacam Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld, que a colocaram ao lado de místicos – como San Juan de la Cruz – e de experimentalistas – como Guimarães Rosa (de quem era íntima amiga).
Segundo, ainda, o crítico Leo Gilson Ribeiro, Hilda Hilst “submerge o leitor num mundo intrépido de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Horror, a Busca”. Na juventude, HH era mais festejada por sua beleza física do que pela profundidade quase insuportável de seus versos. Até o Carlos Drummond de Andrade chegou a arrastar mais de uma asa por ela.
HH sempre detestou “panelinhas” e ignorava o poder dos lobbies literários. “Não quero ser um espetáculo. Quero que me leiam”, costumava dizer.
Sem filhos, morando em meio a esculturas talhadas em madeira, livros e muitos cães, a escritora continuava vazando diariamente a vida na literatura. Entre seus livros destacam-se “Qadós” (o livro que mais apreciava), “Com os Meus Olhos de Cão”, “A Obscena Senhora D” e “Rútilo Nada”.
Para HH, coisa punhal era mais palavra. Pensava tato e vinha negro. Água-viva-luz. Máscara de nojo, cão de pedra, era assim HH, que olhava muito para os pés. Nela um muito de todos: pompas, fachadas, mas lá no invisível se sabendo tigre. Pensares de dentro, mas nela a pequena pétala de carne. Sua vida: pergunta e palavra – o som sempre rugido vindo da garganta abissal.
A seguir, algumas das perguntas que fiz à Hilda Hilst numa manhã ensolarada de novembro, quando de minha estada na Casa do Sol, nos arredores de Campinas/SP.
Fernando José Karl – Hilda Hilst por Hilda Hilst, quem é?
Hilda Hilst – Sou um pequeno vitral malva e anis decompondo-se sobre a mesa onde a música fez cocô. Meu ovo cabe na galinha. Meus pés tortos cabem no céu. Bule de prata. Bata branca. Sou um corpo rajado, um sopro do alto, que é brisa, e entorto a língua, a linguagem, disseco tripas, galopo meu quarto de um canto a outro e misturo histórias que contei antigamente. Sou Grande Caracol Baboso, lábio frouxo encantado. Já perdi dez milhões de sedas e estou aqui sovada, ampliada para a morte, coração minúsculo. Costumo, de madrugada, mas não conte a ninguém, dar lambidonas num corpo de Anjo que vermes descarnam. Acho esquisito chamar-me Hilda Hilst.
Fernando José Karl – Em 1957, por ocasião de sua primeira visita a Paris, você procurou Marlon Brando, que estava lá filmando junto com o Dean Martin. Como foi esse encontro?
Hilda Hilst – Eu queria muito conhecer o Marlon Brando, achava-o lindo, e então me tornei namoradinha do Dean Martin só pra ficar perto do Marlon. Mas eu não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Me vi obrigada a agüentar o Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava o Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, a Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido o Marquand...
Fernando José Karl – O estilo confessional é um dado muito presente em sua obra. A que você atribui esse estilo?
Hilda Hilst – Eu acho que o escritor quase sempre está inteiro naquilo que escreve. Existem, claro, momentos que não fazem parte de sua vida, mas acredito que o escritor está totalizado naquilo que escreve e, penso, isso não é só coisa minha. Você vai desdobrando possíveis personalidades suas, as personagens têm tudo a ver com uma parte do escritor que foi levada a um extremo de maldade, ou de beleza, ou de perfeição.
Fernando José Karl – O que você escreve poderia ser traduzido assim: uma tentativa de tornar intensamente visíveis as coisas que você ama?
Hilda Hilst – Mais que isso: definitivas, eternas. Pode ser que um dia, na hora de minha morte, eu me lembre dessa luz incindindo nesse cinzeiro. São os caminhos da luz, talvez, que você tem que percorrer dentro ou fora de si mesmo.Há momentos em que você viveu a perfeição, a beleza, e existe uma nostalgia da beleza dentro de cada um de nós, que seria Deus, o inominado. Penso que o homem tem a nostalgia da santidade, da perfeição, da luz.
Fernando José Karl – Para terminar, rápido e rasteiro – qual o mistério dos mistérios para você?
Hilda Hilst – Eu penso que seja a paixão, a nostalgia da paixão, que é terrível, mas que, por outro lado, faz você revivescer. Para mim, me apaixonar com pudor era uma coisa maravilhosa. Mas, até mesmo nas minhas fantasias eróticas – e eu estava sempre só quando as tinha – eu ansiava por uma imagem e, vocês sabem, ansiar imagens é infernal. Você não sabe qual imagem vai olhar sua decomposição na velhice. Eu desejo que quem me olhe seja meu cúmplice, cúmplice de minha sina.
Pequena biografia
Hilda Hilst nasceu no dia 21 de maio de1930, em Jaú/SP. Filiação: Apolônio de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso. Faleceu a 04 de fevereiro de 2004, no Hospital das Clínicas da UNICAMP, (onde estava internada desde 1 de janeiro), em Campinas/SP. Causa: Deficiência cardíaco e pulmonar. O primeiro livro de HH foi "Presságio", 1950.
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