A
Porque, Rodrigo, aqui, em frente à minha melhor amiga meus olhos ardem e eu não sei o mistério do poema.
As lágrimas vêm e voltam.
Com a ausência de Debret meu pai se irrita:
- mas eu sei que ele passou por aqui.
Porque, diante da insanidade de meu pai que caminha no corredor dizendo: Mar, oh mar salgado - a imagem perene de Debret
Nossos olhos ardem e, Rodrigo, minha melhor amiga chora copiosamente enquanto fuma três cigarros.
O tabaco, diz ela, foi colhido no sul.
Rodrigo, e meus olhos?
Quanto deles ainda lágrimas?
Um fato:
Nesse mar, três cigarros não significam nada.
B
Por dois minutos e meio
percebeu vultos e sons.
Batizaram-na Luíza,
antes que expirasse.
C
Pela manhã, vi imobilidade e dissolução
com a córnea coberta por uma secreção amarela.
Inércia, Ana, é o movimento da espera.
D
Guilherme rompeu a luz e, com flecha voraz,
acertou o pequenino vaso de porcelana chinesa
que sua mulher, grávida de oito meses, trazia entre os olhos.
Os fragmentos incandesceram a flecha que incendiou a floresta.
No chão, sobre maçãs, reluzem soluços de Guilherme.
E
Katherine olhava-me e eu dizia: só homens lhe traduzem a obra. Katherine cobrava -me uma dívida e eu sussurrava: cuidado com eles, são vampiros que seduzem e sequestram sua alma. Katherine unhava-me e eu gemia: não sou eu, olhe para trás, veja como eles fazem. Katherine tapava-me a boca e eu esperneava: afaste-os, eles se aproximam, se aproxim... Katherine engoliu-me.
F
Bernardo,
amor ancestral,
obrigada por secar minhas lágrimas.
Desejo-te vento quente, pedra de toque sabedora deste insight:
querido, querida, querido.
Leitor de tudo,
domador da louca
mãe da criatura.
Senhor de todos os suspiros,
da melhor parte,
da ansiedade e da fissura.
Amo dos meus gemidos,
Cala-te.
G
Contra minha veia cava lançou:
todas as taças de cristal da boêmia;
sete anáguas engomadas;
os bisqüis da penteadeira;
espinhos das rosas plásticas.
Na minha veia cava inoculou:
unhas, veneno,sangue, ferrões,saliva, esperma.
Seu nome é impronunciável.
H
Deu um nó de marinheiro na corda com a qual se enforcou ontem.
Antônio encontrou o corpo.
Sofia trouxe flores.
A igreja católica não permitiu que a enterrassem no cemitério.
Hoje,
piso na grama verdinha que cobre a última morada de Teresa.
I
Dentro da noite veloz, na noite passada: beije-me beije-me beije-me Francisco sua língua ácida seus olhos verdes deixe-me deixe-me deixe-me que eu não significo
A b s o l u t a m e n t e
nada.
J
Há serpentes na cabeça da Medusa.
Cegas, não reconhecem espelhos.
Alimentam-se da palavra pensamento.
Hay serpientes, hay serpientes e são trágicas
como essa língua.
K
Fiz uma piscina de azulejos para a boneca sem braços e mergulhei algas azuis nela.
Na pele transparente desenhava-se a sombra de suas artérias.
O corpo flutuando,
o sol trespassando as algas
e um vento forte me soprando para ti,
Dulcinéia.
L
Meu Deus, Meu Deus, Meu Deus!
Quando o vi no meio da rua supliquei:
- Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
Sagrado Coração de Jesus,
Santa Teresa D’Ávila,
poeta São João da Cruz!
Aluísio, meu filho, arma em punho no meio da rua, quando o vi:
- Mãe do Perpétuo Socorro,
Senhora da Divina Luz!
meu deus... meu deus... meu deus...
M
Que na cidade ninguém veja:
as cinzas na pena do pássaro,
as manchas na pele do pêssego,
as rugas na aura de seda.
Isso, porque a imagem na tela, um dia,
ainda que estreita,
elegeu das belas a bela e
Greta
abriu no batente da porta
a fresta por onde passou
o pó,
a luz,
a tormenta.
Que na cidade ninguém veja.
Assim seja.
N
Depois das bombas, ergueram imensos vitrais.
No salão principal colocaram um espelho em frente ao outro.
Ângela, dentro do “tomara que caia”, analisa as infinitas possibilidades da sua omoplata.
O
Constanza cozinha sempre os mesmos objetos, mas sabe que há formas diferentes de fazer interagir os átomos
Enquanto isso aguarda aquele que traz minério na língua e o bolso cheio de dardos
Durante a noite, tempera os dardos e os cozinha com o minério que arranca da língua dele aos bocados.
P
Sal grosso para secar ferida.
Com perfume de coentro e pinça,
Beatriz procura pelo coração do peixe.
Durante meio século,
Sangra.
Q
Está aberta a temporada de jabuticabas no quintal.
O menino observa a colheita e o reflexo das folhas na casca negra das esferas.
Ontem, Luna construiu o instrumento que lhe permite alcançar os galhos mais altos sem tirar os pés do chão.
A árvore é o que é.
O menino respira no ritmo dos movimentos dela.
R
Desde Gutemberg, Ramon roía um osso no quarto dos fundos e as letras boiavam perdidas dentro da caixa .
No início, Ramon no quarto dos fundos tocando guitarra e as letras perdendo-se na caixa.
Buraco negro, câmara escura, letras no país dos meninos perdidos.
Quem veio primeiro: o homem, o verbo, Gutemberg ,a caixa,ou a galinha?
S
Na terra distante onde nasceu Clara, havia um barranco de onde brotavam pedras semipreciosas.
Um dia ela foi até lá mostrar o mistério das pedras para a irmãzinha que ela inventou.
De mãos dadas, mergulharam no rio.
T
E depois, Amélia, voltar ao que nos é sagrado:
o mar íntimo dos cheiros e dos gostos guardados,
onde a mãozinha de um anjo acaricia nosso rosto .
Com o ouvido na concha,
calar o espírito das coisas em nós.
U
E Ingrid chorou
Não temo mais a sua dor.
Ingrid ainda chora
Y
Amanheceu na casa de Santa Efigênia.
Fred, com fotofobia, recolhe-se ao buraco do teto
Santa Efigênia protetora dos pretos.
Numa época remota eles traziam ouro em pó nas carapinhas que lavavam na pia batismal.
Santa Efigênia intercede pelos pretos.
Numa terra remota ainda há uma centena de galos que cantam ao amanhecer e
Santa Efigênia , da torre do sino, abençoa os pretos que sob as luzes amarelas caminham para o trabalho.
Fred, no buraco do teto, dorme o sono dos justos.
W
Levanta-te canto,
deita sol em minha pele.
Anda.
Ressuscita-me Lázaro,
com o diamante cravado em minha guelra .
(Enquanto isso, um urso polar caminha sobre a geleira).
V
Pela manhã, extasiada, Conceição viu do navio a beleza do mar:
- A vida é mesmo um milagre!
Para celebrá-la, fez um coque e estreou um colar.
X
Quando comecei a falar, aos dois anos e meio, eu dizia água e nomeava coisas como xícara e bidê.
Chamava vento de vento e assoviava como meu tio avô que já sabia escrever. Eu só falava e cantava e desenhava barcos e coloria e contava estrelas porque, como meu tio avô, já sabia escrever.
Agora, uma velha senhora, peço água e não me interessam mais palavras como xícara e bidê.
Nos intervalos, ainda assovio.
Z
Trezentos e cinqüenta e dois relógios e uma obsessão pelo ponteiro dos minutos.
Enquanto contava o tempo Gepeto tentava, desesperadamente, aprender a mentir.
Adriana dos Anjos
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