sexta-feira, 17 de abril de 2009
Sou incrédulo, mas tenho um pequeno negócio – A Loja dos Aquários – na rua dos Olivos, 22. Eu, que recendo a chifre, de vez em quando abro, a facão, uma clareira no capinzal atrás do sobrado onde passo os dias. Pela janela envidraçada gasto os olhos, e não consigo ler o nome do barco parcialmente apagado pela ação das ondas. Ela guarda um talo de chuva na língua. Ela sai de baixo do guarda-sol branco, bate a toalha para que os grãos de areia despeguem; anda, quieta, e cobre a cabeça com o mar. Ela é escritora; finge ser uma das três belas de Edo. Eu sou musicista e também pratico – toda quinta-feira – o kyudô: o caminho do arco. Ela, na esquina sempre ventando, vive num casario colonial do século 19 e lá vai fumaça. A distância entre o meu sobrado e o casario dela é de 100 metros. Nada nunca soube, antes eu sou – poucos aceitam esse fato – eu sou o autor, o verdadeiro autor de alguns textos atribuídos a outros escritores. “Este segundo desapareceu para sempre”, leio aqui num tomo de Cioran. Tudo é insignificante. Não perder de vista as entranhas do inescrutável. Folheio uma anotação de Nietzsche: “A percepção final possível para uma raça já está implícita em seu primeiro mito religioso”. Esse lugar onde eu e uma das três belas de Edo confluímos; o nome desse lugar é Candelária, cortado por um ribeirão de água potável. Ela tem algum domínio dos rudimentos da língua catalã. Ela cheira cocaína pura se nas calhas do casario colonial águas da chuva. Ela enfia não sei o quê entre as coxas: talvez uma enguia do mar Adriático. Isso mesmo: ela phode com uma enguia. No quarto dela a luz morna do abajur não emite um “a”. A noite acaba feito gim. Eu aprecio muito escutar as máquinas da lavanderia. As noites eu as passo em claro – soníferos, analgésicos, cortisona – e nada: a dor vigora ainda mais nesse nervo exposto; dor mais suja que pau de galinheiro. Ela – uma das três belas de Edo – recebe o vento de Candelária para o chá – tea for two – jazz do coração: prosa que dá água na língua. Eu também prefiro dar as caras na rua. Vivo recluso num caramujo com meu mofo à espera do inevitável desenlace. A barca com sua grande vela de bambus; a imagem de um junco chinês no mar. Não sei por que cargas-d’água penetrei surdamente essa rua sem saída. Um balaio cheio de mangas, eis o que ela deixou na soleira do meu sobrado. No casario colonial dela esqueci um cesto de carpas. A noite acabou feito gim. O gim acabou; o gelo; e eu busco uma morte de luz que me consuma, enquanto espanco os ossuários com um ramo de chuva. Uma das belas de Edo é uma engolidora de fogo; engole o fogo dessa manhã que ferve. Não vê a hora, ela, de entornar na língua um tonel de água.
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