Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava — o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais — e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!
O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.
Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei ou voltarei para os eflúvios da noite. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar.
Escuto cismas da serpente corcunda que insiste em cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir? A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia.
Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer. Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move.
A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.
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