O segundo encontro: visita à Casa de Água de Lucana. Estirando-se num fluxo e refluxo de ondas, o mar – sultão lascivo – respinga nas plantas, pedras e silêncios de Villa da Concha. Casa de Água --- vagarosa, protegida com vasos de terracota; anjos enfiam-se pelas frinchas. A varanda em duas águas, com telha cerâmica, apóia-se sobre as cimalhas com finalizações
Cavaquinho
Ostras no bafo vagens brotos verdes
água no copo
água tônica de quinino
cavaquinho no sereno
a voz rouca do gramofone na sala de jantar:
repuxo a brasa para minha sardinha
ostras no prato
rosas e murtas no jardim da Casa de Água
evohé Bakkhus moeda de ouro
faisões des vers antiques
um xote para violoncelo e galinha caipira
sala de jantar domingueira
papagaio na gaiola
dessacralização da ode
As salsas ondas do mar cicatrizam feridas fundas. Águas de vento, aroma de canícula. E, no maralto dessangrado, algumas ondas de fina renda, angras corroídas pelas ondas. Às vezes, à meia-noite, nem secas nem molhadas as salsas ondas do mar, nelas flutuando – água viva – o torso de Lucana que guarda em si, não o cântico da sereia, mas o que, segundo Kafka, é – dela – o mais terrível segredo: o silêncio. Pudesse eu reter o teu fluir, ó ondas espessas de halo salino, e minha mente atenderia mais a harmonia oculta que a harmonia visível; eu, K., que sempre havia precisado, para escrever, de Vazio e de belos relâmpagos. Nem que seja na imaginação, para escrever eu preciso me sentir num dos cômodos do Taj Mahal. Lucana esparze óleo de Santo Ignácio sobre o salso elemento: um sono na barca transparente – as algas, os corais. Junto aos ramos de uma oliveira tardia, ela preferiria luz de canoa verde, mas o deus Orum quis que ela fosse um sono na barca transparente. Lá fora chove torrencialmente e o rádio dá a notícia que barcas naufragaram e o mar revolto lanha as costas rochosas e as areias. Lucana: uma leoa na neve --- suas cravas se agudizam. Preferiria uma cachoeira na alma, mas a deusa Kalami sentencia: vai ser leoa, neve. Amanhã ela vai ao cabeleireiro, ao Mercado Municipal e ao Cemitério. Lucana silente no tronco de amarga oliveira. Lucana inteira: dama-do-lago, açucena, o golfo-da-flor-branca. Compra uns livros raros no sebo. Confere o dinheiro e só tem duas moedas de ouro. No teu corpo, Lucana, tu me pertences, sete anos de brisa no cativeiro. Foste da mesma matéria do ópio que sorvi no cais à espera da barca. Acerco-me de ti, ó música de loucos, para queimar o pulmão nos astros. O silêncio – escuto-o de olhos fechados – conduz aos espinhos e bálsamos. Na verdade, o pomar de laranjeiras só existe nos sonhos do pássaro, que aguça o tímpano e recorda que no teu corpo, Lucana – apinhado de estrelas – a voz sem voz habita no Jardim da Sacerdotisa, que à noite venta, de manhã é luz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário